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quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Uma final de cada vez


"A nossa equipa feminina de futebol está apenas na terceira época de atividade, mas a garra, a mística e o espírito solidário que evidenciam em campo mais parecem de um grupo de trabalho com muitos anos de percurso no Clube. Além de totalmente justo, o triunfo de ontem, no terreno do FC Famalicão, é mais um sinal de maturidade.
O reencontro com o destino, que marca a presença na final da Taça de Portugal 2019/20, arrancou com um golo [penálti concretizado por Nycole] logo aos três minutos e ficou confirmado já no período de descontos [toque decisivo de Cloé Lacasse]. Foi uma partida difícil, intensa, mas com final feliz para quem mais fez por merecer.
É no relvado que tudo se decide e é neste contexto que, jogo a jogo, as futebolistas do Sport Lisboa e Benfica voltaram a mostrar capacidade de luta e muito coração para alcançarem mais uma final. A pandemia levou, em março, à suspensão das competições oficiais, mas a recuperação no calendário das "Taças femininas"... da Liga e de Portugal da última temporada (promovida pela FPF) permitiu às benfiquistas voltarem a sonhar. Entre os próximos meses de dezembro e janeiro (datas a definir), as nossas futebolistas estarão, assim, em competição por dois dos objetivos adiados e que representam o trabalho e a qualidade de um grupo de atletas alargado; tanto o plantel da presente época, como aquelas jogadoras que acabaram por seguir novos rumos nas carreiras, todas fizeram por merecer estas finais, que serão, agora, jogadas sob forte ambição para o Clube – mas com ataque a uma final de cada vez! 
Também na conjuntura da UEFA, o Benfica terá na primeira semana de novembro a estreia na Liga dos Campeões Feminina, ainda que tenha de passar duas rondas de qualificação, antes do acesso aos 16 avos de final.
As profissionais da equipa feminina do Benfica e respetivo staff técnico multidisciplinar orgulham-se do emblema histórico que envergam ao peito. Todos estão cientes que os tempos atípicos em que o mundo se situa são oportunidades para definir novas metas. Este é um grupo de trabalho que tem a ambição de deixar marca em 2020/21, sabendo que há contas para acertar com 19/20: sempre com respeito pelas equipas adversárias, mas respeitando ainda mais a história e os valores do Benfica!

P.S.: No dia em que o primeiro-ministro anunciou o regresso ao estado de calamidade, o Sport Lisboa e Benfica, que tudo tem feito pela proteção da saúde pública, junto dos seus colaboradores e das suas equipas e na organização dos jogos em que está envolvido, tem de se questionar se todas as pessoas que estiveram presentes na bancada do Campo n.º 1 do Centro de Estágio do FC Famalicão pertenceriam à organização do jogo e ao staff da equipa famalicense...
E o esclarecimento dessa dúvida tornou-se ainda mais premente pelas lamentáveis manifestações racistas ocorridas ontem, vindas dessa bancada e dirigidas à nossa atleta Christy Ucheibe.
É imperativo que este tipo de comportamento seja erradicado definitivamente na nossa sociedade e, em particular, nas bancadas de estádios e pavilhões. É inaceitável que continue a haver atos racistas e que os prevaricadores não sejam sempre punidos. Este é um sintoma da persistência de atraso civilizacional neste domínio, o qual há muito deveria ter sido colmatado.
À Christy Ucheibe e às suas colegas de equipa, manifestamos a nossa solidariedade e reafirmamos que o Sport Lisboa e Benfica continuará a contribuir ativamente para a supressão deste flagelo da nossa sociedade."

Tiago Dantas | Do Seixal para Munique sem ver a Luz


"Hoje vou contar-vos uma história. Era uma vez, no ano longínquo de 2004, um menino de apenas quatro anos chamado Tiago Dantas que chegou ao SL Benfica. O menino chegou, viu e começou imediatamente a vencer.
Queimou etapas atrás de etapas, subiu escalões, venceu títulos; enfim, traçou um plano e focou-se nele até chegar ao seu objetivo. Mas, fizesse o que fizesse, ninguém lhe augurava um futuro promissor ao nível de topo europeu. “É muito baixinho”, diziam uns. “No futebol sénior não dura nem dois minutos”, diziam outros. A verdade é que o “pequeno” Tiago lá ia fazendo o seu trabalho e lutando pelo seu futuro como jogador profissional.
Até que teve a sua oportunidade! O grande dia chegou e o pequeno rapaz teve a honra de envergar o manto sagrado em plena Catedral, substituindo ainda por cima uma lenda viva do futebol encarnado: falo de Jonas.
Ser o jovem Tiago a entrar para o lugar de Jonas deu a entender que iria ter mais oportunidades na equipa principal encarnada, o que não aconteceu. Depois desse jogo, frente ao RSC Anderlecht, Tiago Dantas apenas voltou a entrar num jogo a contar para a Taça da Liga e jogou somente cinco minutos.
Paira no ar a dúvida: então qual é o problema de Tiago Dantas? Não tem qualidade suficiente? Será que os críticos (os maus críticos, quero eu dizer) tinham razão? Será que é de facto demasiado franzino para jogar a nível sénior?
Pois bem, Tiago Dantas não tem problema nenhum, tem mais que qualidade, e não, os críticos não tinham razão: Dantas é um jogador fantástico, que compensa a sua falta de robustez física com uma inteligência fora do comum. Num futebol cada vez mais tático e menos físico, Tiago Dantas tem tudo aquilo de que precisa para se tornar num grande jogador.
Contudo, e depois de se dedicar ao Sport Lisboa e Benfica por 15 anos, o “pequeno” Dantas é transferido: empréstimo, esperemos que sem opção de compra, para um clube qualquer lá das “Alemanhas”, um tal de FC Bayern Munique.
Portanto, Dantas não tem espaço numa liga portuguesa, nem que seja a ganhar experiência em jogos teoricamente mais fáceis, como taças, mas sai para um clube que é considerado um dos tubarões europeus e que joga na terceira melhor liga do mundo? Ainda que não vá para jogar pela equipa principal, é com eles que Tiago Dantas se treina, é com eles que Tiago vai aprender e evoluir cada vez mais.
Até podia dizer que não entendo como é que isso aconteceu, mas o que não entendo verdadeiramente é como é que o SL Benfica deixou sair Dantas sem aproveitar todo o seu talento, uns dos melhores que já passou pelo Seixal. Tiago Dantas é um jogador com a marca “Made in Benfica”, talvez por isso se explique a falta de aposta no “miúdo”."

Kulkov em Vila do Conde...

O infeliz carregador de botijas de gás


"A frase é tão essencialmente prática que só poderia ter sido escrita por um britânico: «On 12 September 1885, Arbroath played in the opening round of the Scottish Cup against Aberdeen-based club, Bon Accord, and the official score line reads as 36-0». Nenhuma tergiversão, nenhuma emoção exposta, apenas a constação de um facto que não deixava de ser chocante: o Bon Accord, com seu nome tão delicodoce, levara um daqueles achacamentos que se recordam per omnia saecula saeculorum, e aqui estamos, nesta páginas, a provar cabalmente a veracidade da expressão. O autor da frase é um escritor e jornalista que vive actualmente em Espanha, perto de Madrid, e além de ser completamente fascinado pela história do futebol assina a sua obra – que já vai sendo espessa – com o nome de Gary Thacker.
Foi Gary que me alertou pela primeira vez para o tal encontro entre o Arbroath e o Bon Accord ocorrido lá pelas calendas de Dezembro de 1885, decorrem agora 135 anos. Disputava-se a primeira eliminatória da Taça da Escócia e o resultado foi tão abracadabrante que ainda hoje há quem se disponha a fuçar em jornais velhos e testemunhos dispersos para tentar perceber a razão de tamanho cataclismo.
Foi um embate de gente madura e outra nem por isso. Se o Arbroath fora fundado em 1878, o Bon Accord vira a luz do dia apenas um ano antes. Não era um clube de futebol verdadeiraamente estruturado: era apenas um grupo de rapaziada que jogava ténis, râguebi e pólo e que, quando se juntava para um momentos de association, assumia o nome do bairro de Aberdeen onde quase todos viviam. Além disso, estava a contas com muitas contas, ou seja, metido em sarilhos financeiros que não pareciam de fácil resolução. Obviamente que estas informações começam a feder a desculpas, mas verdadeiramente os moços de Aberdeen também têm direito a apresentar uma (ou várias) justificação para terem sido escambulhados daquela forma e nem a morte de todos os elementos da equipa os exime de trazerem a lume argumentos válidos.
Gary Thacker assume ter encontrado provas irrefutáveis que os infelizes derrotados subiram ao relvado de Arbroath’s Gayfield Park com somente nove jogadores. Além do mais, não tinham nenhum guarda-redes disponível e nem sequer equipamentos para se fardarem a preceito nos balneários. Convenhamos que a desgraça do Bon Accord ganhava foros de ridículo. Ou mesmo de grotesco.
Um dos heróis dessa gesta era vendedor de botijas de gás, Andrew Lornie, e ganhara um físico impressionante ao carregá-las aos ombros até às casas dos clientes. Na esperança que pudesse ocupar mais espaço do que qualquer dos outros, enviaram-no para a baliza. Andrew era um rapaz tímido, apesar de ser quase da altura do pico do Ben Nevis. Envolvido pelos adeptos adversários que se instalaram atrás da sua baliza, muito deles chegando até a invadi-la com um descaramento sublime, tremeu como varas verdes e não há registo que tenha feito uma defesa que se visse. À medida em que os infernais noventa minutos iam decorrendo com uma lentidão desesperante para o infeliz carregador de botijas de gás, um fedelho de 18 anos, John Petrie, passeava-se sobre a relva como percorresse, saltitando, um campo de gipsofilas à procura de crisântemos: só à sua conta marcou 13 golos. Não estava atmosfera para devaneios desse género, é uma simples imagem. Pelo contrário, choveu sobre a magnífica cidade portuária de Arbroath – alguns mais dados às complicações preferem tratar por Aberbrothock –, famosa pelos seus bifes red-Angus, como se alguém lá no céu tivesse deixado as torneiras todas abertas. Um pormenor que fez com que Jim Milne Sr. perdesse por completo a paciência e começasse a insultar todos aqueles que lhe passavam à distância da voz e, igualmente, o ser divino que se dera ao luxo de pretender inventar um novo dilúvio, como se o primeiro não tivesse demonstrado a sua completa initulidade.
Jim era o keeper titular da equipa do Abroath. Há quem diga que não viu qualquer adversário a menos de 25 metros de distância. Pediu um guarda-chuva a um espectador e deixou-se ficar à espera, encostado a um dos postes. Uma grandessíssima estucha! Dave Stormont foi o árbitro. Mostou-se sensibilizado com a força de vontade dos jogadores do Bon Accord: «Vi-os baterem-se como podiam. Encaixaram 36 golos mas a verdade é que anulei mais uns 6 ou 7 por off-side, embora a tempestade me possa ter feito cometer erros em alguns deles».
Uns dia mais tarde, nova tranquibérnia caiu do céu aos trambolhões: a Federação Escocesa tinha mandado a nota para a realização do jogo para uma morada errada. Algum amanuense apressado e ansioso por uma pint de pale ale no pub do lado, confundira o Bon Accord com o Orion FC e atirara os primeiros para um massacre que não fora ordenado pelo sorteio. Nos dois anos que se seguiram, o Destino emendou a mão. O Abroath recebeu o Orion nas duas primeiras eliminatórias daa Taça. Ganhou por 28-0 e por 18-0. Era de tirar a barriga de misérias."