Últimas indefectivações

terça-feira, 17 de novembro de 2015

CÊ-Ó-ELI!

"O Benfica vai regressar em breve à Azinhaga do Alfinetes para defrontar um dos mais castiços clubes de Lisboa. Pelo que vem a propósito recordar dois confrontos de 1946, um deles com Rogério Lantres de Carvalho a receber uma homenagem dos que não o esquecem em sua casa.

Era assim que se gritava nas bancadas do Engenheiro Carlos Salema, à Azinhaga dos Alfinetes...
Muitas vezes já se encontraram Benfica e Oriental para as mais diversas competições - Campeonato de Portugal, Taça de Portugal, Campeonato de Lisboa -, mas nenhuma para a Taça da Liga, o que se compreende, a competição é nova e carece ainda de uma afirmação completa, embora tão profundamente marcada pelas vitórias 'encarnadas' que não é fácil perceber-lhe outras cores.
Então, vai daí fiquei com a folha em branco na frente, à espera de teclar no QWERT meio sem saber que confronto entre vizinhos da mesma cidade e de bairros tão populares iria trazer até estas páginas que são mais vossas do que minhas.
Vários se perfilavam. Um da época de 1974/75, para a Taça, vitória gorda do Benfica por 8-0; um 9-0 para o Campeonato na época de 1950/51; certo empate renhido em Marvila (0-0) para o Campeonato de 1953/54???
Mas, enfim, Lisboa é Lisboa, fui deitar o olho a um encontro para o Campeonato de Lisboa, nos idos de 1946, tinha o CÊ-Ó-ELI acabado de nascer da fusão entre Chelas, Fósforos e Marvilense, pelo que a curiosidade gritou mais alto e até me lembrei do velho Carlos Pinhão que tinha uma ternura muito particular pelo clube da Azinhaga dos Alfinetes e acabou por ter uma rua com o seu nome exactamente nos caminhos que vão das Olaias para Oriente.
Depois, tal como as conversas e as ginjas, fui de um jogo a outro, isto é ao da primeira volta e ao da segunda.
Mas calma na enfileiração das letras. Um de cada vez.
No dia 6 de Outubro, o Clube Oriental de Lisboa apresenta-se no Campo Grande tendo como base o esqueleto da equipa do «engolidos» Fósforos, conhecida pela forma enérgica com que se batia em todos os minutos do jogo. Mas era uma energia falha de gana, acentuava quem lá esteve e viu como um meio-campo lento se deixava dominar e como Rogério «Pipi» e Julinho exploravam as falhas de um defesa desatento. França era o centro da tempestade. E, se ao golo de Rogério logo aos três minutos, ainda respondeu Isidro com o empate, Julinho(2) e Vítor Baptista, acabado de chegar da Sanjoanense, trataram de levar para o intervalo uma vantagem tranquila.
No segundo tempo, os golos vieram em catadupa - 8-1. Sublinho as palavras de Manuel Mota: «Sob o ponto de vista técnico, o Oriental continua a firmar escasso poder realizador. Os avançados, quando em posição de remate, perdem a calma e apontam mal. Recorde-se como Moura, sem ninguém nas balizas do Benfica, perdeu uma oportunidade. O remate saiu a metros de um poste, para fora, simbolizando bem a ineficácia dos 'orientais'...»

Em Novembro Rogério regressou a casa
Não foi um campeonato brilhante para o Benfica, segundo classificado atrás do Sporting com dois pontos menos que os rivais do Lumiar. E também não o foi para o Oriental, no quinto e penúltimo lugar, apenas à frente da CUF.
No dia 10 de Novembro, o Benfica visitou Marvila. O Oriental ganhara, entretanto, fama de equipa resistente capaz de bater até o Belenenses, proeza que não era de deitar fora. Portanto, cautelas!
E, rapidamente, cautelas para que te quero. Com mais de meia-hora para o apito final, a vantagem dos encarnados sobre os cor-de-vinho era escandaloso: 5-1.
Francisco Ferreira, era imperial. Arsénio, Julinho, Rogério e Vítor Baptista imparáveis.
Do lado oriental, um desacerto bem mais similar ao que fora exibido no Campo Grande, na primeira volta, do que a fiabilidade das últimas exibições. Os repórteres presentes no Carlos Salema eram de opiniões claras e concatenadas: «A linha atacante do Benfica manobrou os sectores atrasados do adversário com desenvoltura, progredindo rapidamente no terreno e variando o modo de fazer a ofensiva: tão depressa o jogo era desenvolvido em passes curtos como em longos, num sistema que se opunha à intercepção».
Mas, de repente, o jogo abana. Sobre os 60 minutos, Leitão faz 2-5 e, sete minutos depois, de «penalty», Bettencourt reduz para 3-5.
A diferença encolhe significativamente. Mas de pouco serve. A alma dos jogadores do Oriental, clube de um velho bairro de gente operária, é enorme. O seu estilo improvisado e valente e pormenores de entendimento colectivo.
A dez minutos do fim, o golpe fatal numa esperança que não deixara de ser ténue como as fitas de nevoeiro que sobrevoam o Tejo: Rogério, também na conversão de uma grande penalidade, faz o 6-3 para o Benfica.
É ele que encerra a resistência marvilense e recebe das mãos dos adversários uma camisola que entra para a história do futebol em Portugal: é grená com o escudo do Marvilense encimado pela águia do Fósforos e com a bola do Chelas. Ninguém se esquece que Rogério foi o primeiro jogador da zona oriental de Lisboa a jogar pela Selecção Nacional.
É a oferta simbólica de um breve regresso a casa."

Afonso de Melo, in O Benfica

Putin dobra a cerviz


"1. A sentença aplicada a todo o atletismo russo pela prática indiscriminada de doping de estado, com as consequências daí advenientes para a sua participação nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016, dão-nos ideia da difusão e sofisticação deste flagelo. Por uma vez, até Vladimir Putin teve que dobrar a cerviz. Do mesmo modo que a revelação de que a realização do Campeonato do Mundo de Futebol em 2006 foi objecto de vários subornos - já depois de se saber que também as próximas edições da prova (na Rússia em 2018 e no Catar em 2022) o haviam sido - mostra até que ponto a corrupção impera na modalidade. Ou seja, doping e corrupção, que no fundo são a mesma coisa, andam e sempre andaram de mãos dadas. Não se pense, porém, que o fenómeno se reduz às altas esferas e não atinge em igual medida os patamares inferiores, tanto profissionais como amadores. O andaço é global e abrange, em maior ou menor grau, todos os desportos, sem excepção.
2. Só depois de muitos anos e ao fim de uma carreira modesta é que Jorge Jesus entrou na galeria dos bons treinadores. Ao contrário, por exemplo, de Marco Silva que ainda com os dentes de leite já dizia a olho nu ao que vinha. Para ser campeão foi necessário chegar ao Benfica onde tinha à sua disposição um plantel de luxo. Se esta época vier a repetir a proeza com o Sporting, o que duvido, então sim a sua cotação dará um salto. Sempre, naturalmente, ao nível caseiro porque no campo internacional o reconhecimento de que goza é muito pouco. Nenhum grande clube inglês, italiano ou espanhol o contrataria e muito menos lhe pagaria o salário que aufere em Alvalade. Ponha os olhos em Paulo Sousa, treinador da Fiorentina, que poderia ser seu filho e já é um nome respeitado na Liga dos Campeões. Só a prosápia de Jesus, que sabe de antemão que nunca treinará na Europa dos grandes, é que o leva a dizer que se estivesse à frente de uma dessas equipas de maiores recursos seria campeão europeu logo na sua temporada de estreia. Enfim..."


Manuel Martins de Sá, in A Bola

Sentimento de um ocidental

"Muitos já terão visto o momento do França-Alemanha em que uma das bombas explode à porta do Stade de France. Evra, que conduz a bola, no seu meio campo, faz um ar de espanto, que se transforma numa expressão de um certo desdém, para logo depois atrasar a bola. O jogo prossegue e a França acaba por sair vitoriosa. Hoje, o resultado não importa, o que não quer dizer que o jogo não tenha sido relevante. Pelo contrário.
Tendo em conta o que se sabia estar a acontecer, pode ter sido tentador interromper a partida ou até cancelar os jogos de selecções no dia seguinte. Teria sido um erro. Se houve uma intenção clara nos atentados foi impedir que desfrutemos em conjunto do prazer de ver um jogo de futebol num estádio, de assistir a um concerto de rock numa sala irrespirável ou que nos juntemos, homens e mulheres, a beber uns copos.
É um daqueles casos em que a vida pode aprender como desporto. No futebol, o melhor que uma equipa pode fazer se quiser ajudar o adversário é adaptar o seu sistema de jogo. Com o terrorismo não é diferente: não há pior sinal do que ceder a quem se rege pelo culto bárbaro da morte.
Podemos, como o Evra, por momentos atrasar a bola; só que, logo depois, com a mesma expressão do francês, resta-nos voltar a atacar e impor a superioridade do nosso modelo de jogo: encher estádios, beber álcool e gostar de rock' n roll. Prazeres que o fanatismo religioso veda a alguns; mas que fazem parte do culto da alegria, um dos alicerces da nossa civilização."

Pura irracionalidade

"O Mundo está de luto. Os trágicos acontecimentos vividos na passada sexta-feira em Paris causaram em todo o Mundo dor, tristeza e revolta. Decorria o encontro particular entre as selecções da França e da Alemanha quando se ouviram explosões nas imediações do Stade de France. Os ataques terroristas voltaram a causar o pânico na capital francesa depois dos ocorridos no início do ano na redacção_do jornal 'Charlie Hebdo'. Desta vez, o atentado terrorista verificou-se em vários pontos da cidade, de forma concertada, e o número de vítimas mortais já supera a centena. A irmã do internacional francês Antoine Griezmann estava no Bataclan, a sala de espectáculos onde ocorreu a maior parte da tragédia e, felizmente, saiu ilesa desse verdadeiro filme de terror. A mesma sorte não teve a prima de Lass Diarra, outro internacional gaulês que estava em campo neste França-Alemanha de má memória.
Um dos bombistas tentou mesmo entrar no estádio e, não fosse agarrado pelos seguranças, estaríamos perante um cenário bem mais negro. O número de vítimas seria bem maior e, com o jogo a ser transmitido para milhões de pessoas, o impacto televisivo da tragédia teria um efeito devastador.
Não foi a primeira vez que o terrorismo e o desporto se cruzaram. Basta lembrarmos os ataques nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972. Depois de sequestrados, 11 atletas da equipa israelita acabaram por perder a vida. Em 2012, em Port-Said, no Egito, mais uma tragédia, 74 mortos, quase mil feridos. Mais recentemente. em 2013, um atentado durante a Maratona de Boston, a mais famosa à escala global, resultou na morte de três pessoas e 264 feridos.
Neste contexto, o desporto, o futebol, deve reagir, assumindo e promovendo os seus valores junto dos mais jovens, junto da comunidade. O desporto deve reforçar a sua dimensão social, promovendo espaços de tolerância e afectos educar, formando a personalidade humana. O desporto deve ser factor de inclusão, de integração, promotor da interculturalidade. Os dirigentes, jogadores, treinadores, árbitros, a família do futebol, devem nesta hora de incerteza para a Europa e o Mundo dar um sinal maior. Um sinal de esperança."

Alcoolismo académico

"Uma reportagem televisiva sobre excesso de bebidas alcoólicas mostrou uma competição de caloiros sob tutoria (?!)de veteranos universitários. Deveriam entrar em locais de venda de bebidas para as ingerir, somando pontos. Quanto maior a graduação alcoólica mais pontos obteriam. Ganharia a equipa mais pontuada, isto é, mais alcoolizada!!!
Professor universitário há 40 anos, conhecendo a evolução das atitudes estudantis, seguidor da imprensa, não me surpreendeu a insanidade da prova. O que me chocou foi o ar assertivo da jovem veterana travestida de líder que se julga importante, ao explicar o que se passava como algo perfeitamente normal e adequado. Alguma centelha de (má) consciência haveria nos que se esconderam das câmaras por detrás das capas do traje académico, ali muito mal honrado. Este caminho para o estado alterado de consciência, via bebedeira, visava a socialização dos recém-chegados à Universidade! Não é preciso ser Doutor, nem Mestre, nem Licenciado para saber que constitui agressão à saúde...
Se os organizadores socializassem discutindo livros, temas sérios, procurando elevar a cultura, talvez descobrissem que o passatempo que promovem não está ao nível de quem aspira a ser elite por via do conhecimento que é suposto adquirirem pela via académica. Reconheço que há grande quantidade de estudantes muito acima daquele estádio cultural. Receio que a colocação dos alunos em função das médias, tendo virtudes, tende a hierarquizar o tipo de cidadãos que chegam às diversas faculdades. As que exigem médias superiores tenderão a receber cidadãos mais preocupados com o conhecimento e valorização, relegando as acessíveis a médias mais baixas para o risco de acolher quem mais dificilmente será elite cultural de referência.
Assim, talvez os primeiros emigrem para paragens onde a sua preparação seja mais valorizada e os segundos se quedem, acabando por gerir o País.É a lógica da nossa História."

Sidónio Serpa, in A Bola

Uma peregrinação a Coimbra para ver a bola

"Era a primeira final entre o Benfica e o FC Porto e Júlio Barbosa, que não a podia perder por nada, fez-se à estrada a pé...

Disputava-se, a 28 de Junho de 1931, a final do 10.º Campeonato de Portugal, que marcava o primeiro embate entre o Benfica e o FC Porto no derradeiro jogo de uma prova nacional. Foi uma final marcada por estreias: pela primeira vez era disputada no Campo do Amado, em Coimbra, e, com grande surpresa, o jogador benfiquista João Correia estreava-se na equipa de Honra.
Um desafio que nenhum benfiquista poderia de perder, terá pensado Júlio Pinto Barbosa, engraxador e grande benfiquista. Não tendo rendimentos para comprar uma viagem de comboio de Lisboa a Coimbra, decidiu fazer o percurso a pé. Estudou o itinerário e partiu de Lisboa, a 23 de Junho, 'munido dos seus utensílios de engraxador para ir ganhando o pão e a pousada de cada dia'. Chegou a Coimbra a 27 de Junho e já a cidade universitária vivia um ambiente de grande agitação.
No dia seguinte, chegaram ainda mais pessoas e mal se conseguia andar na baixa da cidade. 'Além dos comboios especiais que conduziam muita gente, a todo o momento, dum lado para outro, chegavam automóveis transportando desportistas. Viam-se bandeiras azuis e vermelhas por toda a parte. E por toda a parte se ouvia gritar: Viva o Benfica! Viva o FC Porto!'
Marcaram presença mais de 6 mil espectadores, entre eles Júlio Barbosa, que teve a alegria de ver o seu clube sagrar-se bicampeão de Portugal, feito inédito até então, ao derrotar o FC Porto por 3-0.
A equipa do Benfica, ao ter conhecimento da sua peregrinação e 'rendidos por tão extrema devoção (...) trouxeram o heróico Júlio Pinto Barbosa para Lisboa, de comboio'. Foi caso para dizer que 'Coimbra tem mais encanto na hora da despedida'!
Na chegada a Lisboa, em véspera de São Pedro, o Benfica teve uma recepção apoteótica. Até altas horas, ainda 'os adeptos davam largas à sua alegria. Uma marcha (...) entoava em estrilho, a seguinte quadra: Olha o balão, Olha o arraial! Viva o Benfica - Campeão de Portugal!'
O troféu conquistado pode ser visto na área 5. A 'Taça' do Museu Benfica - Cosme Damião."

Ana Filipa Simões, in O Benfica