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domingo, 5 de agosto de 2018

Notícia falsa

"A Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD informa que é falsa e sem qualquer fundamento a notícia que dá conta de uma eventual negociação e transferência do jogador.
João Félix para o West Ham. João Félix faz parte de um núcleo de jogadores que recentemente subiu à equipa A e é uma aposta firme para esta e para as próximas épocas."

“No primeiro dia de treino, na Arábia, quando fiquei nu no balneário, os meus colegas atiraram-se para o chão e taparam a cara”

"Aos 13 anos o Benfica foi buscá-lo a Elvas, mas José Soares nunca conseguiu vingar na equipa principal dos encarnados. Andou por Alverca, Famalicão, Campomaiorense, mas também por França, Escócia, Alemanha, Arábia Saudita e Qatar antes de terminar a carreira, em Badajoz. Entretanto já trabalhou como modelo, vendeu vinhos, montou sistemas de rega e é personal trainer. Agora está empenhado em criar uma empresa de consultoria na área do imobiliário com dois sócios. Pai de um rapaz de 18 anos que joga basquetebol, em Dallas, no EUA, José Soares vive com a mãe, em Elvas, onde está finalmente a tirar a carta de condução. Sobre o famoso jogo Campomaiorense-FCP, em que marcou Jardel, diz que a partir daí colocaram-lhe uma cruz no futebol português

Nasceu em Elvas?
Sim, sou filho de mãe portuguesa e pai guineense.

Tem irmãos?
Tenho uma irmã mais velha, a Susana, que está com 47 anos, e um irmão mais novo, o Adolfo, que tem 40.

Quando nasceu o seu pai estava em Portugal há muito tempo?
Estava cá há 2 anos. Conheceu a minha mãe em Elvas. O meu pai, Feliciano Soares, era jogador de futebol. Primeiro na Guiné, em Bissau, e quando veio para Lisboa, a pessoa que o tinha trazido iniciou os contactos para ele começar a treinar na CUF do Barreiro. Ainda treinou no Sporting, que na altura tinha jogadores fabulosos, e alguém de Elvas soube da presença do meu pai em Lisboa, um jogador de futebol com muita qualidade, e acho que foi o senhor António Simões de Elvas que veio a Lisboa e levou o meu pai para Elvas. Por isso lembro-me perfeitamente que, desde miúdo, eu e o meu irmão estávamos sempre a jogar à bola e o meu pai a treinar.

Quando nasceu o seu pai ainda jogava futebol? Era assim que ganhava a vida?
O meu pai era jogador de futebol, mas naquela altura, e ainda por cima em Elvas, não havia muito dinheiro e ele tinha duas profissões. Era jogador de futebol e era mecânico bate-chapas, trabalhava numa oficina. A minha mãe, Laurinda, era costureira.

O futebol corria-lhe no sangue.
Sim, a minha família na Guiné também tem mais jogadores. É de família. O meu avô paterno era do Sporting, mas o meu pai era um benfiquista ferrenho. Eu e o meu irmão saímos da barriga da minha mãe já a jogar futebol (risos). Éramos pequeninos, mal andávamos e já chutávamos na bola. Essa é uma das partes boas da infância, jogarmos na rua.

Da escola gostava ou nem por isso?
Era malandro na escola, infelizmente. Faltava às aulas por estar sempre a jogar à bola. Por vezes, nos intervalos grandes, estava tão concentrado a jogar que nem dava pelo toque da entrada; e depois quando davam o toque de saída, eu pensava que era o da entrada (risos). Quando chegava à aula, o professor dizia: “já tens falta”.
Torcia por que clube?
Pelo Benfica, sempre. Ouvia os relatos na rádio. Era a equipa do Néné, Bastos Lopes, Humberto Coelho... Depois havia a Taça das Taças e a Taça UEFA, a maioria dos jogos não dava na televisão e eu, o meu irmão e o meu pai ficávamos os três junto da rádio a ouvir os relatos.

Como é que se dá o seu ingresso no Elvas?
Quando éramos miúdos, eu e o meu irmão jogávamos na rua mas depois, já com uma certa idade, víamos os nossos colegas mais velhos a jogarem federados nos clubes e gostávamos tanto de jogar que não nos passava pela cabeça não fazer o mesmo.Decidimos ir lá, ao clube, porque o treinador era amigo do meu pai, tinha jogado com ele. E apesar de ainda não termos idade, fomos na mesma. “Vocês ainda não têm idade”. “Mas a gente quer, a gente joga mais do que eles, joga tão bem como eles”. E foi assim.

Então começou a jogar com quantos anos no Elvas?
Com 8 ou 9 anos. Hoje em dia já se pode jogar federado com essa idade, mas na altura não. Fui sempre muito precoce no futebol jovem. Era mais novo e jogava sempre com os mais velhos.

Uma coisa é jogar futebol na rua outra é jogar num clube e começar a ter regras e treinos específicos. Gostou?
É diferente, mas gostei. Os miúdos que têm jeito para o futebol e que gostam e amam mesmo aquilo, têm uma facilidade inata em adquirir certas coisas do desporto. Está-te no sangue, às vezes as dificuldades são pormenores. Respirar o balneário é tudo o que nós estamos à espera.

Como é que vai parar ao Benfica?
Tinha 13 anos e houve um treinador que chegou a Elvas, viu-me a jogar e disse que eu tinha que jogar nos juniores. Tive que ir a Lisboa fazer o exame físico para ver se estava preparado, se a minha parte óssea aguentava jogar nos juniores, passar tantos escalões acima. E assim foi, comecei a jogar nos juniores, em Elvas, mas ainda com idade de iniciado. Começo a jogar, alguém que me viu e o senhor Peres Bandeira disse para ir ao estádio da Luz fazer um treino. Mas, entretanto o FCP, também queria que eu fosse para lá. Houve um dirigente do FCP que esteve na minha casa. Só que mal eu soube que o Benfica queria... (risos). Se o Benfica não me tivesse querido, se calhar tinha sido jogador do FCP. 
Veio fazer o tal treino à Luz. E depois?
Fiz um treino e assinei logo. Tinha 13 anos.

O seu irmão não foi chamado?
Foi. Por coincidência o meu irmão nesse ano tinha vindo a um torneio aqui em Lisboa, o Torneio Inter Associações, em que participavam todas as seleções de distrito de Portugal. O meu irmão jogava muito bem, participou e o Benfica mostrou interesse. Por coincidência viemos os dois em Agosto desse ano para cá.

O José com 13 e ele com 11 anos.
Sim. A minha mãe ficou assim....Ao início não foi fácil, deixar os 2 filhos em Lisboa ainda por cima muito novos. A mim também me custou bastante.

Ficaram a viver onde?
No centro de estágios, que era debaixo das bancadas do antigo estádio da Luz. Ficámos os dois juntos no mesmo quarto, foi o que nos salvou. Mas ao início custou muito. O que é que custava mais? Estava habituado a estar com os meus pais e com os meus avós, com a minha irmã, as minhas tias, e ali estava fechado dentro de um quarto só com o meu irmão. O centro de estágios tinha 25 jogadores. 

Ainda se lembra dos outros jogadores que lá estiveram consigo e que tenham singrado?
Sim, o Gil Gomes, o Kennedy, que lá ia almoçar sempre. Eu tinha 13, 14 anos e ele já tinha 16. O Rui Costa tinha subido a sénior nesse ano, o Rui Ferreira que jogou no FCP e no V. Guimarães, o Cândido Costa, o Paulo Lopes, o Edgar...

Quem era o treinador quando chegou?
O professor Arnaldo Cunha e o João Santos.

Vem de Elvas para uma grande cidade e um grande clube. Qual foi o primeiro impacto? Sentiu medo de não corresponder às expectativas?
Não, medo não senti. O que senti quando comecei a treinar foi que tinha que dar corda aos sapatos, como se costuma dizer, porque a qualidade era muito grande e nos clubes grandes todos os anos há jogadores que são dispensados, ou pela pressão ou por falta de qualidade. Os treinos são muito exigentes, a qualidade é muita alta. Mas pensei: vou conseguir porque também tenho qualidade e vou dar o máximo de mim em todos os treinos. A evolução é muito importante naqueles anos. Aos 13 és bom, mas aos 14 podes não ser e aos 15 também e aos 16 desapareces. Por isso, sabia que tinha que treinar muito diariamente, ter uma mentalidade forte; o meu objectivo era entrar na equipa e ser titular e aos 18, 19 anos estar na primeira equipa.

No meio disso tudo, a escola onde é que ficou?
Nós treinávamos da parte da tarde e tínhamos tempo para ir à escola. Mas essa é a minha parte negativa. Éramos miúdos, entrávamos às 8 da manhã e muitas vezes o que queríamos era ir dormir. Às sete da manhã levantávamo-nos, mas havia alguns jogadores que não estudavam e olhavam para nós: “Onde é que vais José?”. “Vou para a escola”. “Ah vais? Eu vou dormir”. Levantavam-se para tomar o pequeno almoço e iam dormir. Quer queiramos, quer não, não é fácil.

Em que ano escolar desistiu?
Só fiz o 9º ano.

Faz os 2 anos de júnior no Benfica. E depois?
Quando saí no último ano de juniores ainda estive no Benfica (acho que até Janeiro) e depois fui para o Famalicão, para a 2ª Liga.

Antes do Famalicão, nesses primeiros anos no Benfica quais foram as maiores amizades que fez? 
Sempre me dei bem com os da minha equipa. Por exemplo, com o Bruno Caires, Filipe Correia, Nuno Rosa, o João Peixe, o Xavier, Bruno Moita...

E namoros?
À volta do centro de estágios do Benfica havia sempre muitas miúdas, que falavam connosco e na altura namorei com uma.

Faziam muitas partidas uns aos outros no centro de estágios?
Muitas vezes o vigilante do centro de estágios saía, tinha que ir fazer qualquer coisa, e nós começávamos a jogar à bola nos corredores (risos). Quando ouvíamos o carro dele a chegar, ia tudo a correr para a cama, isto por volta da 1 da manhã. Era uma confusão.

Nunca tentavam sair também?
Sim. Éramos 22 miúdos e aquele senhor muitas vezes não tinha paciência para nós, mandava vir com toda a gente. E quando assim é, a vontade de fazer porcaria é muito grande. Mas nada de extraordinário. Um dia estava o Edgar e o meu irmão a discutirem. Quando ouvimos, fomos ter com eles e perguntamos: “Estão a discutir porquê?”. “Ah, estamos a discutir porque ele diz que quer ser o primeiro a jogar snooker. Nós vamos viajar para França para a semana”. O meu irmão nunca tinha andado de avião e o Edgar tinha vindo de Angola para cá, já não se lembrava. E nós: “Oiçam lá, vocês são burros os dois. Não há snooker no avião, isso não existe” (risos). Eles pensavam que havia snooker no avião e estavam a discutir sobre quem ia jogar primeiro (risos).

Estava a dizer que entretanto foi para o Famalicão.
No meu último ano de júnior fui campeão da Europa por Portugal. Eu, o Dani, o Beto, o Nuno Gomes, o Ramirez, o Bruno Caires. Nos clubes muito dificilmente iríamos jogar, éramos todos de clubes grandes. Eu, o Bruno Caires e o João Peixe ficámos no Benfica. Ainda fiquei lá uns meses, mas depois fui emprestado ao Famalicão o que era bom para mim, porque no ano a seguir tínhamos o campeonato do mundo no Qatar, e é importante jogarmos com regularidade. Por isso fui para o Famalicão.

Foi sozinho?
Fui. Às vezes o Beto (Severo, do Sporting) apanhava-me, ele tinha sido emprestado ao União de Lamas e ia ter comigo a Famalicão ou eu ia ter com ele a Lamas. Isso é que nos safou. E depois vínhamos muitas vezes para os treinos da selecção porque íamos ter o campeonato do mundo.

Ficou a viver onde?
Numa residencial, que tinha restaurante, era a minha sorte. A família da residencial era fantástica, tratou-me não como um hóspede, mas como um filho, foi uma coisa fabulosa. Mas cada vez que vinha para Lisboa era uma coisa impressionante: ficava maluco com tudo, mas depois tinha que voltar.

Lembra-se de primeira vez que foi chamado à selecção?
Fiquei maluco. Ainda por cima na altura sentia-me um bocado injustiçado, porque eu achava que já devia ter ido à selecção. Era titular no Benfica, era muito importante nos juvenis e nunca me tinham dado nenhuma oportunidade, nem para treinar. Achava aquilo estranho. Os meus colegas até diziam: “Zé, como é que é possível?”. Até que nos sub-17 fui convocado para treinar. Treinei bem e levaram-me para o Torneio do Porto. A partir daí fui sempre.

Como era esse grupo da selecção?
O melhor que já tive até hoje, fantástico. Somos amigos até hoje. Eu, o Beto, o Dani, o Nuno Gomes, o Bruno Caires, o pessoal que está no norte, falamos de vez em quando. Numa selecção não é fácil ter tantos amigos assim. Mas nós conseguimos e ganhamos muitas coisas por causa disso.
Quando assina o primeiro contrato?
Quando era júnior do Benfica.

Lembra-se do primeiro ordenado?
Acho que eram 200 contos. Comprei roupas, era muito vaidoso, e guardei o resto. Fui à inauguração do Colombo, fui lá comprar umas roupas.

No Famalicão esteve só uma época.
Nem chegou a uma época mas aprendi bastante porque o grupo era bom.

Quem era o treinador?
Acho que era o Francisco Vital.

É muito diferente passar de um campeonato de juniores para o seniores?
É nessa transição que muitas vezes o pessoal se perde. No meu caso, eu tinha tudo o que qualquer miúdo quer ter. Estava num clube grande, sou campeão da Europa, estou habituado a ter todas as regalias, numa semana estou em Itália, noutra estou na Suíça em torneios internacionais, vou para a seleção, sou invejado pela maioria dos miúdos em Portugal... E aí vem o duro, a transição para o futebol sénior. O treinador quase que nem te fala: “Tens que fazer isto”. És profissional, o carinho que te dão no futebol jovem não existe no futebol sénior e quem não acompanhar essa dificuldade, quem não for forte o suficiente para aguentar essa transição, não consegue. Estou habituado ao Benfica e metem-me num clube do norte, onde nunca tinha ido, a ser tratado da mesma forma que os outros jogadores seniores; eu com 18 anos, havia jogadores com 35 anos, e tratavam-me como se eu tivesse a mesma idade. Quem não for forte o suficiente, não tem hipóteses. Eu tive sorte porque apanhei uma mistura de jogadores experientes e jogadores mais ou menos da minha idade no Famalicão. Na altura estavam lá o Paiva e o Tiago Pereira, que jogou no Benfica, e os mais velhos tratavam-nos muito bem. A direção também tinha pessoas bem formadas, há muitos benfiquistas em Famalicão também. 

O que é que fazia nos seus tempos livres?
Muitas das vezes ia para o Porto, apanhava o comboio, ou então o Beto, o Edgar, o Rui Óscar, o Madureira e pessoal que estava norte, apanhavam-me lá e íamos passear. Também lá fiz alguns amigos em Famalicão. Às vezes recebia cartas de miúdas: “Zé Soares como é que estás?” E ficava todo contente (risos).

Quando é que começam as primeiras saídas nocturnas?
Eu já saía quando estava nos juniores em Lisboa. O engraçado é que íamos todos para o Alcântara Mar. Os porteiros já nos conheciam. Havia um, o Tó que nos apertava a mão e ainda hoje quando vou a algum sítio onde ele está a fazer de porteiro, faz a mesma coisa. Também íamos para as discotecas da Costa, mas era quando podíamos, não saíamos muito. Se, por exemplo, jogávamos ao sábado, à noite saíamos, andávamos sempre de um lado para o outro de autocarro, arranjávamos sempre forma. 

Nunca tirou a carta de condução?
Não, estou agora a acabar de tirar. Eu sou o atípico jogador de futebol, não gosto de carros. Ferraris, Porsches... Nunca tive essa vontade. Mas se soubesse o que sei hoje, tinha tirado logo aos 18 anos. Preciso de um meio para deslocar-me, mas não tenho nenhum. Há pessoas que ficam surpreendidas: “Mas como é que não tens carro?”. E por acaso até tenho sido prejudicado por isso, mas este ano disse: “Acabou”.

Depois de ter estado no Famalicão, regressa ao Benfica, mas mandam-no para o Alverca. Como é que reagiu?
Não reagi bem porque tinha feito um bom Campeonato do Mundo, no Qatar; não fantástico, mas bom e achava que pelo menos devia ter feito a pré temporada no Benfica, para ter uma oportunidade na equipa principal. Mas fez-me bem ir para o Alverca.

Quando lá chegou quem era o treinador?
Era o professor Arnaldo Cunha, que também era bom. O capitão do Alverca era o Raul José, o adjunto do Jesus. E foi comigo o Adriano, o Nelson Morais, depois mais tarde é que foi o Maniche, mas nessa altura acho que foram só o Adriano e o Nelson Morais.

O seu irmão no meio disto tudo onde é que andava?
O meu irmão era júnior ainda no Benfica.

Esteve dois anos emprestado no Alverca, sempre com o professor Arnaldo Cunha?
Não, também estive com o Mário Wilson no 2º ano.

Depois vai para o Benfica.
A minha transição da equipa B para a equipa principal aconteceu numa semana em que o Benfica ficou sem centrais. Lembro-me que chamaram-me, comecei a treinar e era para jogar a titular, em Braga. Era o Manuel José treinador. Mas na altura o Benfica trocava muito de treinador e às vezes era um bocado confuso. Comecei a treinar e ele disse-me “Miúdo vais ser titular com o Sp. Braga”. Fui, mas nem fiquei no banco, fiquei de fora. Depois acho que veio o Paulo Autuori. Mas o primeiro jogo como titular foi com o Graeme Souness.
Deve ser uma grande desilusão andar a treinar e não ser chamado.
Desiludiu-me bastante e não me fez bem. Treinava com a equipa principal, mas depois não jogava, ficava no banco, e no dia seguinte tinha que ir jogar com o Alverca para o norte, depois vinha e no dia seguinte ia para o estádio da Luz, depois voltava ao Alverca. Essa indefinição não faz bem e a mim não me fez bem. Uma semana estava a jogar no estádio da Luz com não sei quantas pessoas e na seguinte ia jogar não sei onde com o Alverca. Nunca tive aquela estabilidade que hoje em dia os miúdos têm.

Isso fazia com que tivesse menos vontade de treinar e de jogar?
Não, mas fazia com que eu muitas vezes desacreditasse que algum dia pudesse ser titular no Benfica. Muitas vezes tinha mais a ver com as pessoas e com o projecto que faltava ao clube. Tive muitos presidentes e o único que tem um projecto como deve ser é o Luís Filipe Vieira. Apanhei muitos presidentes no Benfica que era só meter dinheiro, mais dinheiro, mas ninguém tinha um projecto, ninguém fazia mais campos, ninguém se lembrou de fazer um estádio novo ou uma academia como a que o Benfica hoje tem. Não havia um projecto que consolidasse os miúdos na equipa principal. 

Entretanto, enquanto andava entre o Benfica e o Alverca, teve como treinadores no Alverca o Mário Wilson e o José Romão. Com quem é que tinha uma relação mais próxima?
Com o Mário Wilson era excelente.

Teve algum treinador de que não gostasse?
Tive um com quem nunca me identifiquei com a sua forma de treinar, o professor Neca.

Onde?
No Desportivo das Aves. Não digo que ele seja mau treinador mas não entendo uma pessoa que pensa futebol daquela forma.

Como assim?
Vou tentar explicar. Antigamente, há 50 ou 100 anos, no futebol os defesas eram para defender, os médios para defender e atacar e os avançados para atacar, mas há uma evolução e hoje em dia, os defesas são os que começam a atacar. O ataque começa pelo guarda-redes, ele defende mas depois começa o ataque, é o ataque organizado. A forma de pensar futebol do Prof. Neca não encaixa em lado nenhum. Eu fui treinado por ele há 17 anos e perguntava-me mas onde é que este homem tem a cabeça? Ele esburacava o campo para as outras equipas terem dificuldades! Ele dizia o Nuno Gomes vem jogar com o Benfica e assim tem dificuldade em jogar. Passava-se o mesmo quando vinha o João Pinto, com o Sporting. Mas será que ele não percebia que aquilo era mau para eles, mas para nós também? Ele dizia “Não, isto é mau para eles que são muito melhores do que nós”. É este pensamento que eu não entendo. Como é que alguém pode treinar futebol assim, e hoje ainda treina, não entendo. Depois ele foi despedido e apanhamos o Carvalhal que já era outra coisa, não tinha nada a ver.

Mas antes do Desportivo das Aves vai para o Campomaiorense.
Sim e no Campomaiorense foi excelente. Foi em 2000. Apanho o Carlos Manuel como treinador e foi fantástico a todos os níveis.
Já estava mais perto de casa, de Elvas.
Sim, mas nessa altura eu vivia Lisboa, em Miraflores, onde tinha comprado apartamento.

Esteve uma época no Campomaiorense?
Não chegou a uma época. Eu tinha começado a época com o Graeme Souness, as coisas até não estavam a correr mal. Joguei com o Heynckes também. Só que em Novembro ou dezembro fiz uma rotura no gémeo e estive uns dois meses parado. Em Janeiro o Campomaiorense fez-me a proposta de eu ir jogar para lá até ao final da época e assim foi. Fez-me bem porque joguei bem, as pessoas gostaram de mim. E gostei muito do Carlos Manuel, foi dos melhores treinadores que tive.

É no Campomaiorense que há o célebre jogo com o FCP do Jardel, que já foi falado muitas vezes. Esse jogo marcou-o muito.
Sim, marcou muito a minha carreira.

De que forma é que o marcou e o que é que sente em relação isso?
Marcou-me por várias razões. Eu sei perfeitamente onde é que estive mal. Devido à minha posição, devido às características do Jardel, aquilo que significava aquele jogo para ambas as equipas. Nós estávamos a lutar pela manutenção e para o FCP era fundamental ganhar para ser campeão nacional. Em jogo jogado, sejamos sinceros, nós fomos melhores do que eles. A arbitragem foi boa? Não foi boa, nem para o Campomaiorense nem para o FCP. Fui demasiado agressivo no jogo? Fui. Ele também não se deixou ficar. Mas há outra razão para tanto empolgamento, é que eu era jogador do Benfica na altura, juntando isso ao facto do FCP acabar por não ser campeão...Acho que o Sporting passou-lhe à frente ou aumentou a vantagem, não me lembro muito bem o que é que acontece. Tinha de haver um bode expiatório pela derrota do FCP. Quem foi? Eu e o árbitro.

Recorde quem era o árbitro.
O Bruno Paixão. O árbitro continua a arbitrar, a mim fizeram-me uma cruz no futebol português desde esse jogo. E no entanto o que aconteceu, para mim, são coisas que muitas vezes podem passar-se entre os centrais e os avançados. O Zidane que é o Zidane deu uma cabeçada na final do Campeonato do Mundo.

Está a dizer que a sua carreira no futebol português acaba por causa desse jogo?
Sim.

Sentiu muita revolta e injustiça?
Muita, porque ligava a televisão e os programas desportivos, era só para falarem mal de mim. Até que houve um dia em que tive que ir à televisão para me defender, no programa do Paulo Catarro. 

Ainda se lembra do que é que disse?
Lembro. Assim que cheguei ao programa havia um comentador do FCP, que se agarrou a mim e disse “Zé tenho que dizer mal de ti porque sou do FCP”. Não lhe passei cartão nenhum, ele levava as semanas todas a falar mal de mim e nem me conhecia. Tudo por causa de um jogo de futebol. Mas também lhe disse “Doutor isto é um jogo de futebol. Acha que é normal estar todos os dias a falar mal de mim? Por causa de um episódio e porque o seu clube perdeu? Você não me conhece de lado nenhum. Parece que matei alguém.” Era crucificado todos os dias, é impressionante.

Houve alguém que lhe tivesse dito alguma coisa para o reconfortar?
As pessoas do Campomaiorense, a minha família, os meus amigos, o meu pai, todos foram fantásticos, deram-me apoio, ligavam, até advogados porque houve uma altura em que o ataque era tão grande, que parecia que tinha dado um tiro em alguém. O Carlos Manuel também foi fantástico, toda a equipa técnica, os meu colegas do Campomaiorense. Só fiquei triste com o meu clube, porque nunca ninguém do Benfica me ajudou. Nessa altura eu era jogador do clube e recebia o ordenado pelo clube, mas nunca me ajudou. Sempre gostei do Benfica e o amor é para toda a vida, mas nessa altura afastei-me do Benfica porque nunca me ajudaram.

Não estava à espera?
Estava à espera que me defendessem. Mas nem uma palavra, nem um telefonema, nada. As únicas pessoas que me ajudaram dentro do futebol foi o Campomaiorense, por intermédio do presidente João Manuel e Do Carlos Manuel, o Chica Gatão e o Madureira que foram impressionantes na ajuda. Os meus colegas de outros clubes de futebol também ligaram-me. Se fosse o Benfica de agora, tenho a certeza de que teria sido diferente.

Como é que vai parar ao Desportivo das Aves?
Mais uma vez estava à espera do Benfica. Saio do Campomaiorense a jogar bem, a um nível muito bom e pensei que iria então ter oportunidade de jogar no Benfica, mas mais uma vez: “Vais ser emprestado”. O Desportivo das Aves ligou e eu fui. Fui muito bem tratado na Vila das Aves mas senti-me deslocado.

Foi outra vez sozinho?
Não, nessa altura já era casado e o meu filho nasceu nesse ano.

Onde é que conheceu a sua ex-mulher?
Em Lisboa. Tinha 19 ou 20 anos quando conheci a Mónica. Casei com 23 anos, acho eu. O Rodrigo nasce a 25 de Agosto de 2000. Quando vou para o Desportivo das Aves, eles também vão, ele era recém-nascido.

Como é que correu a época?
Joguei, mas não foi boa. Por muitas razões, minhas também. Eu sou culpado de tudo o que se passou na minha vida por esta ou aquela razão.

Por que diz isso agora?
Porque na altura desencantei-me um bocado com o futebol. Ao ser mal tratado todos o dias por aquilo que aconteceu, ao ver que o meu clube não me defendeu, tinha acabado a época no Campomaiorense num nível altíssimo, com 23 anos, esperava estar no top porque era um objectivo que tinha. Depois aparece o Aves e vejo o Benfica a descartar-se de mim, isso tudo fragilizou-me um bocado. Era uma época em que esperava estar num nível completamente diferente. Depois, o Aves, por mais boas pessoas que houvesse no clube, por mais que os meus colegas fossem todos fantásticos, por inúmeras razões, não gostava do treinador, foi ele que me convidou mas quando comecei a vê-lo treinar, percebi que não poderia evoluir com um treinador assim, não conseguia, por minha culpa a época não correu dentro das minhas expectativas.

E vai para França. Como é que isso acontece?
A ida para França também foi muito má. Acabo a época no Aves e volto ao Benfica, só que o Benfica não contava comigo e comecei a treinar na equipa B. Eu, o Maniche, o Paulo Madeira, o Sabry, o Bossio, inúmeros jogadores, e estivemos até Janeiro sem clube. Entretanto, o Manuel Barbosa liga-me e diz que tinha um clube francês interessado em mim. Mais uma vez, vou ao Benfica falar, acho que com o Vilarinho, e ele: “Olha Zé, o melhor é rescindir, vais para França e é o melhor para ti. O Benfica também não conta contigo”. E fui para França, sozinho, para tentar jogar o melhor possível porque havia a possibilidade de eu entrar no Olympique de Marselha
Ainda estava casado?
Estava. Fui para França, mas quando lá chego, não sei que confusão é que houve que não podia ser inscrito. Mas já tinha rescindido o contrato com o Benfica. De quem é a responsabilidade? A federação francesa não me aceitou porque já tinham inscrito dois jogadores em Janeiro. Entretanto havia um antigo jogador que era o Franck Sauzée. Ele conhecia-me e liga para o meu empresário a dizer que no Hibernian da Escócia gostavam muito de mim e para eu ir. Comecei a treinar no clube as coisas começam a correr muito bem...

Então foi para Escócia?
Fui e ainda nesse ano. Para Edimburgo, lindo, uma cidade fantástica, a treinar e a jogar bem e o Franck Sauzéé é despedido. Fiquei o resto do ano sem jogar.

Tanto em França como na Escócia esteve sozinho?
Sim, também tinha ido sozinho. Passado mais um ano divorciei-me. A pessoa começa a distanciar-se.

A sua mulher já não quis ir consigo para França?
Ela preferiu ficar cá com o nosso filho, porque ele era pequeno. E ainda bem que não foi, porque vendo bem as coisas, eu fui, depois não fui inscrito, tive que ir para a Escócia a correr e afinal também não deu.
Mas vai para a Alemanha.
As coisas estavam a correr tão mal e eu tinha que jogar. Surge então o Djukic, um jogador do Farense, que me liga a perguntar se queria ir para a Alemanha. Fui para uma equipa da 2ª divisão. E gostei. Trataram-me bem, joguei o ano inteiro, só que parti o peito do pé.

Como é que se deu com a língua?
Falava inglês com eles. Depois encontrei lá um português o Mauro Bastos, que agora está na Colômbia como adjunto. Ajudávamo-nos mutuamente.

Segue-se a Arábia Saudita. O que é que acontece?
Financeira e futebolisticamente precisava de mais qualquer coisa. Gostava de ter ficado num clube da 1ª divisão na Alemanha, mas as coisas não aconteceram e apareceu-me rapidamente um clube da Arábia Saudita, por intermédio do Faustino Gomes, o empresário. Era meu amigo e um dia perguntou-me se queria ir para a Arábia Saudita. O contrato era muito estranho, tinha muito risco. Era só de dois meses. Ele disse: “Zé, tu assinas. Eles dão muitos mil dólares, assinas e se gostas, gostas, se não gostas vens embora. É para um torneio do Egito, queres ir?”. Como tudo de mal que havia para acontecer já me tinha acontecido, resolvi arriscar. Assim que lá chego... meu Deus, onde é que eu estou metido (risos), Tinha visto até ao Barém, quando lá chego o árabe que me foi esperar meteu-me num hotel sozinho e disse para eu lá ficar 2 dias que depois ia buscar-me outra vez”. Assim que chego ao Bahrein, 50 graus, um calor, e eu sozinho a pensar como é que ia conseguir sequer correr ali. Depois há uma particularidade. No Bahrein ninguém te deixa dormir à noite, o telefone está sempre a tocar. Tive que tirar o telefone do descanso.

Mas porquê?
Porque na Arábia Saudita não se pode fazer nada e no Bahrein pode fazer-se tudo. Pode-se beber, há prostituição, os hotéis estão cheios de prostitutas, e por isso levam a noite toda a ligar para o teu quarto para saber se queres alguma coisa. A noite toda triimmm, trriimmm. “Que é isto? Vou ficar maluco” (risos). Estive dois dias sem poder dormir porque o telefone estava sempre a tocar. Porque tirava o telefone e pensava: e se alguém precisa de falar comigo, a minha família? Depois, um calor, aquelas estradas desertas, olhas para a direita deserto, olhas para a esquerda, deserto e estrada que nunca mais acaba. Só me lembrava de Lisboa.

O que acontece quando finalmente chega à Arábia Saudita?
Meteram-me no no centro de estágio, fiquei lá sozinho. Liguei para o Faustino e disse-lhe que ia embora. “Isto é só areia, vou ficar maluco aqui”.

Não estava mais nenhum jogador no centro de estágio?
Ninguém, estava tudo em casa. E outra coisa, só havia dois canais árabes, dois, o resto via-se mal. Mas aquilo até tinha boas condições. Eu pensava: estou na Arábia Saudita, vou ganhar algum dinheiro, mas vou ficar maluco aqui. O primeiro treino foi às oito da noite, com um treinador holandês. Falou comigo; disse que eu tinha que ter paciência, que aquilo era difícil. Depois fomos para o Egipto um mês. Quando vejo o professor Nelo Vingada, que na altura era treinador do Zamalek, digo-lhe: “Mister, até que enfim que vejo alguém” (risos). Fiz o torneio, correu muito bem, eles quiseram renovar por mais um ano.

E aceitou?
Sim, porque tinha uma coisa sólida na mão. Primeiro foram uns meses de Verão para o torneio, estive um ano no Al-Ettifaq e depois fui para o Al-Shamal, do Qatar.

Sozinho?
Não, o meu filho ainda foi ter comigo, ainda estive lá com ele.

A distância do seu filho custava-lhe muito?
Custa muito, é por isso que fiquei forte psicologicamente em todos os aspectos, mesmo em termos de relacionamentos, fiquei forte. Porque se eu consigo estar longe do meu filho, que vive a 10 ou 15 mil quilómetros de mim, nos EUA, consigo estar longe de qualquer pessoa. Sou muito forte em termos de relacionamento com as mulheres por causa disso.

O seu filho foi viver para os EUA quando?
Com 3 anos. A minha mulher foi viver para lá, trabalha numa companhia aérea, tenho um bom relacionamento com ela, com o seu marido e também gosto muito do outro filho dela.

Vivem onde?
Em Dallas, vou lá muitas vezes.
O que fazia nos tempos livres na Arábia Saudita?
Comprei um computador, lia muito, ouvia música. A minha sorte é que tinha colegas brasileiros de outras equipas da mesma cidade e íamos para a praia jogar à bola, fazíamos muitos almoços e jantares. Na altura não é como agora, era mais difícil, íamos sozinhos. O mister Jorge Jesus foi com 10 pessoas, a equipa técnica dele são 8 ou 9, é diferente. Está num hotel de 5 estrelas. No meu caso foi já há 14 anos.

Viveu algum episódio caricato na Arábia Saudita que possa contar?
No primeiro dia em que fui tomar banho, estava nu, só que lá um homem não pode estar nu ao pé do outro. Foi um problema do caraças, começaram a deitar-se no chão com as mãos na cara “Não podes fazer isso, não podes fazer isso” (risos).

Estava no balneário?
Sim, mas eles metem a toalha e vão tomar banho escondidos uns dos outros. Eu estava habituado há anos a despir-me normalmente e ficou tudo: “Não se pode, estás maluco?” (risos). Eu contava histórias daqui e eles diziam: “Vocês no ocidente são uns impuros, casam com mulheres que não são virgens”. Tínhamos muito este tipo de conversa e discutíamos várias coisas. Sei lá, há tantas histórias… Lembre-se de mais alguma história? Eles são boas pessoas e fartava-me de rir com eles, mas têm uma pancada que nunca tinha visto. Uma vez lembraram-se que tínhamos de treinar mais, a ideia foi do capitão da equipa: “Temos de treinar mais, vamos reunir com o mister porque temos de treinar mais”. Eu virei-me para ele: “Não temos de treinar mais, o que temos de fazer é, nas duas horas de treino diário, temos de dar tudo. Depois quando acaba o treino podemos ir para o ginásio. Não é preciso bidiários todos os dias”. Só que quando eles metem uma coisa na cabeça, esquece. Foram falar com o mister: “Temos de treinar mais”. O holandês: “Treinar mais? Mas eu peço-vos para vocês darem mais nos treinos e não dão!”. Eles insistiram para começarmos a treinar de manhã também. O treinador disse que sim, mas que tinha de ser logo às 7 da manhã por causa do calor. “Está bem mister, está bem”. No dia seguinte, para o treino da manhã só apareci eu, o ganês e o brasileiro, que éramos os estrangeiros, os 2 treinadores holandeses e o treinador de guarda redes que era egípcio, mais ninguém (risos). Os que disseram que iam, nenhum foi.

Viveu alguma situação em que se tenha assustado?
Não, tudo tranquilo. Só era um bocado estranho quando às vezes estava na praia e via os aviões de guerra a passarem, os aviões que iam para o Iraque. Estive lá na altura em que apanharam o Saddam. Essa altura era um bocado estranha, a Al Qaeda metia muitas bombas em Riade e eu ia lá muito. Às vezes assustava-me um bocadinho.

E como é que vai parar ao Qatar?
As coisas correram bem na Arábia Saudita. Futebolisticamente falando, os sauditas são muito melhores que os do Qatar, só que aquela equipa do Qatar pagava-me mais do que a saudita e fui. E a vida no Qatar não tem nada a ver com a vida na Arábia Saudita.Tem praia, tem muitos estrangeiros, pessoal da Argentina, do Brasil...

Quanto tempo é que lá esteve?
1 ano e meio, até 2004.

Vivia onde?
Num apartamento. Aí a vida era fantástica, deram-me um super apartamento, ganhava bem também. Tinha alguns jogadores conhecidos, o Akwá, o Caló um cabo verdiano que tinha jogado no Salgueiros. Também lá tinha um amigo meu, o Frederico. Estava lá o Guardiola, dava-me bem com ele. E havia outros jogadores estrangeiros, o Leboeuf, o Desailly, os irmãos De Boer. Vive-se muito bem, mas em termos de futebol não te acrescenta nada. A mim só me acrescentou por causa dos craques que lá estavam. Joguei contra eles. Jogava sempre, fiz não sei quantos jogos. Mas começas a perder aquele amor porque não há espírito futebolístico nesses países.

O que quer dizer com espírito futebolístico?
Aquele frio na barriga quando a imprensa fala no jogo de amanhã, por exemplo. Cá quando há um Benfica-Sporting é a semana toda com aquela pressão, aquele frio que tens no estômago, aquela responsabilidade. Lá é tudo demasiadamente tranquilo. O pessoal que jogou ao mais alto nível gosta é de responsabilidade. Ali não há responsabilidade, basta ver o treino. Se pegarmos no mesmo exemplo do Benfica-Sporting, se eu jogo no domingo, sei que na segunda-feira antes já começo a sentir aquele friozinho na barriga – e quem gosta de jogar futebol, gosta de sentir esse espírito, de ler os jornais logo na segunda-feira, sentir aquela picardia. Sabes que vais enfrentar o melhor avançado de Portugal, sabes que o Benfica tem 5 ou 6 milhões de pessoas e está tudo na expectativa para aquele jogo. Esse espírito não há no Qatar, na segunda-feira estás na praia, terça-feira também, no treino ninguém fala de nada, só um dia antes do jogo é que começam a falar.
Não chegou a jogar nenhum derbi cá.
Não, o que ia jogar, fui expulso na Luz contra o Rio Ave. Mas joguei grande dérbis nas camadas jovens, em sénior é que não.

Foi expulso porquê?
Dois amarelos, uma estupidez minha.

Era um jogador agressivo?
Dentro do campo, sim. Às vezes excedia-me um bocado.

Entretanto vem do Qatar para o Elvas.
Não, depois de sair do Qatar queria voltar a ter aquela sensação, a sentir-me jogador de futebol, não só antes do jogo, mas a semana toda. Ter aquela responsabilidade de no domingo fazer algo de bom. De treinar ao mais alto nível para no domingo estar ao mais alto nível também. Então tentei voltar a Portugal para jogar. Não sei o que é que pensei na altura, mas não tive hipóteses...

Nenhuma porta se abriu?
Nenhuma. Estive sem jogar um ano.

Foi viver para onde?
Voltei para Elvas, para casa dos meus pais. Foi uma altura complicada da minha vida. Estava separado, longe do meu filho...

O dinheiro que foi ganhando investiu-o de alguma forma?
Essa foi outra parte negativa da minha vida. Fui gastando. Mas também nunca ganhei assim muito. 

Onde é que ganhou mais?
No último contrato com o Benfica ganhava bem. Mas o problema é que eu sempre fui uma pessoa que gostava de ajudar os outros. Não estou arrependido de o ter feito, não conseguia dizer que não. Às vezes prejudicava-me. Sempre fui um bocado assim e depois os anos vão passando... Devia ter sido mais egoísta, no bom sentido.

Teve muitas pessoas que se aproveitaram de si?
Sim e depois chegas a uma altura em que pensas: com a ajuda que dei aqui e ali, estava bem.

Tirando o apartamento em Miraflores não investiu em mais nada?
Não. E já o vendi.

Não investiu em nenhum negócio?
Não, vou tentar fazê-lo agora.

Esse ano em que esteve em Elvas não fez nada profissionalmente?
Não. Tentei, tentei no estrangeiro também. Depois de vir do Qatar tentei vários clubes, mas nunca consegui nada. Depois surgiu-me o Wolverhampton, o Faustino Gomes ligou-me, só que eles lá já estavam na pré-temporada, eu treinava sozinho e eles pensavam que eu estava ao mais alto nível para entrar logo na equipa e quando lá cheguei... Precisava de uma pré-temporada e acabei por não ficar. Depois surgiu-me o Egipto. Ligaram-me para ir para o Zamalek. Cheguei ao Cairo, estive lá um mês, mas nunca me apresentaram o contrato, tive que vir embora. O Manuel Cajuda era o treinador e curiosamente disse ao presidente do Zamalek que não me conhecia de lado nenhum (risos), é inacreditável. Enquanto lá estive treinei com dois ou três jogadores e curiosamente o treinador português que me conhece desde sempre, disse que não me conhecia de lado nenhum. A partir daí desacreditei completamente no futebol.
Mas ainda foi para a Índia.
A mim tudo me acontece... Depois sai daí e estive mais não sei quantos meses parado e... apareceu-me um clube da Índia. Cheguei, pergunto pelo contrato e não havia nenhum contrato. Disseram-me que estavam à espera do presidente. Estive lá um mês e meio e não me apresentaram contrato, nem me deram dinheiro, vim embora.

Esteve onde?
Em Goa, mas tive que vir embora. Não sabia o que é que podia fazer mais. Fartei-me completamente do futebol. Era um clube pior do que o outro. Voltei para Elvas, estava lá o Paulinho que é meu amigo e que estava no Salgueiros: “Zé vem aqui ajudar-nos”. Convenceu-me e estive lá meia época com ele e depois fui para Badajoz.

Fazer o quê?
Eles conheciam-me porque Badajoz é muito perto de Elvas. Treinava três dias por semana. Estive a jogar dois anos em Badajoz. Espanha é diferente, tem um espírito diferente, não tem nada a ver connosco. Nós somos mais organizados do que eles e também temos melhores treinadores do que eles. Mas foi bom, conheci outras pessoas, o futebol para mim também já tinha passado, nessa altura já não tinha aquele friozinho na barriga. E quando um jogador de futebol deixa de ter essa coisa, aquela ambição de jogar, de não dormir bem por causa do jogo, se perde isso, acho que é quando chega a altura de se afastar. Deixe de ter essa sensação devido aos sucessivos insucessos que fui tendo.
Como é que surge depois a Academia do Benfica?
Em Espanha tirei um curso de PT e um amigo meu começou a trabalhar na Academia e convidou-me. Conhecia o meu passado no clube, achou que eu podia ser o elo de ligação entre a primeira escola do Benfica em Espanha e o Benfica em Lisboa e convidou-me para trabalhar lá. Estive acho que dois anos a trabalhar com eles.

Mas entretanto começa a trabalhar como modelo. Como é que isso acontece?
Estava numa discoteca em Badajoz, no primeiro ano em que lá estive a jogar, e houve alguém que veio falar comigo. Disseram-me: “Vai lá à agência, gostei da tua aparência física”. Isto foi há 7 ou 8 anos. Estava com uns amigos que se começaram a rir e a gozar, mas eu fui. A partir daí comecei a fazer coisas. Tirei um curso intensivo de 6 meses, dado pela agência.

E gostou.
Gostei.

O que é mais difícil em ser modelo?
Eu era mais introvertido, mas nesse tipo de vida o contacto com as pessoas, as personagens que tens que encarnar, isso é o mais complicado. Há pessoas que não estão preparadas para isso. Há pessoas que têm dificuldade de lidar com o público. Podem ser muito boas mas depois quando têm de lidar com o público não se conseguem expor. E a moda é um bocado isso, é o que tu transmites aos outros. 

O José não teve dificuldade?
Não, fui aprendendo, ensinaram-me a postura. Acho que a moda tem mais a ver com a postura do que com outra coisa, do que com beleza até.

Então gosta do trabalho de modelo...
Mas não é o que mais gosto. Se me perguntarem se sou fascinado com isso – e já trabalhei com pessoas que são fascinadas e felizes –, comigo não é assim. Há 200 outras coisas que gosto mais de fazer do que isso, mas se me convidarem e pagarem, eu vou. Agora é só de vez em quando.

Quando sai da Academia do Benfica em Badajoz, o que é que foi fazer?
Dediquei-me só ao ginásio, ao trabalho de PT, até há bem pouco tempo.

O que fez mais?
Também estive ligado a um empresário espanhol, uma marca espanhola (a Internacional Players) em que andava a tentar colocar jogadores. Ainda estive algum tempo com ele, só que eu tenho alguma dificuldade no mundo do empresários. Porque tentei ajudar amigos meus e não consegui.

Porquê?
Porque se digo a um amigo meu que vou tentar arranjar um clube, não posso mentir-lhe. E no mundo dos empresários tem que se mentir muito. Se vou vender um peixe que não existe, não o consigo vender, ainda por cima estou a lidar com amigos meus. Não consigo fazer isto com nenhum jogador de futebol, quanto mais com amigos. Eu já tinha estado na pele deles, de estar na expectativa. Cheguei à conclusão de que não tinha feitio para isso. Tenho que vender algo que é real.

Mas quando diz “vender algo que é real”...
No futebol vende-se muita coisa...Ele dizia “ligas ao Jorge Andrade, ao Maniche, ao Nuno Gomes e diz que há um clube do Dubai que dá um milhão por mês”. E aquilo não era bem assim. Eu falava com o Jorge e quando lhe perguntava pelo clube, ele: “Ah ainda não há nada”

No fundo o que ele queria é que garantisse o Jorge....
Sim e só depois é que procurava clube. Se desse, dava, mas não era assim que ele me vendia a coisa. Ele dizia-me que já tinha clube. No mundo empresarial do futebol há muito disso. Com o Maniche aconteceu a mesma coisa. Depois saí e comecei a trabalhar na empresa de um amigo meu que queria exportar vinhos.

Gosta de vinho?
Não bebo álcool. É muito raro. Mas esse amigo como tem dinheiro abriu uma empresa de vinhos. Não era produtor, queria exportar vinhos do nada. Comprava o vinho, fazia a marca dele e queria exportar. Pediu para lhe dar uma ajuda e eu como estava sem fazer nada, tentei ajudá-lo mas ele fez algo que, na minha opinião, não estava a fazer bem. Não fez uma prospecção de mercado para saber o que é que realmente se vende lá fora. Acordava de manhã e lembrava-se que o vinho ia custar três euros. As coisas não se fazem assim. Eu não tenho nenhum curso superior, nem nunca tinha trabalhado com vinhos, mas comecei logo a ver que não ia vender vinhos a ninguém. Entretanto a mãe dele um dia de manhã acorda e lembra-se: “José Soares eu preciso de alguém que vá a Angola vender vinhos”. Eu disse-lhe: “O seu filho não vai, os empregados não vão, você quer que eu vá? Então paga-me tudo e eu vou para perceber como é que se faz. Mas não é chegar lá e vender. A sua marca não é conhecida. Para entrar em Angola não é fácil, os ‘tubarões’ estão todos lá a meter produto”. Assim foi. No primeiro dia que cheguei a Angola, liguei-lhe a dizer: “Vocês não vão meter vinho aqui em lado nenhum”.

Porquê?
O processo de exportação é tão complicado que uma pequena empresa como a deles e a forma que queriam trabalhar, não tinham hipótese. A primeira coisa que ele me disse foi que não subornava ninguém. É para esquecer ali. Entretanto já fechou a empresa. Mas, pronto, ajudámo-nos mutuamente e tentámos fazer algo. Também ganhei alguma experiência porque um mês e meio em África, conta como um ano aqui na Europa. Gostei da forma como me trataram, mas há muita coisa em Angola que a pessoa não pode gostar, sinceramente.

Está a falar do quê em concreto.
Da corrupção.

A sua ascendência paterna é da Guiné. Alguma vez lá foi?
Não. Mas brevemente vou. É um sonho que tenho. Estive para ir muitas vezes com o meu pai, mas depois acontecia sempre qualquer coisa. Agora já só a minha mãe está viva, o meu pai faleceu há 5 anos, com um AVC. Foi horrível.

Estava presente quando aconteceu?
Ele saiu de manhã e passado um bocado bateram à porta a dizer que ele estava caído no chão, na rua. Fui a correr. Vi aquilo e passado dois dias faleceu. Foi um choque enorme. Até hoje.
Depois dos vinhos o que fez mais?
Continuei a fazer desfiles, mas não me dava para viver. Entretanto há um amigo meu, que tem uma empresa ligada à agricultura e monta pivôs de rega, disse-me que precisavam de pessoas para ajudar. Eu estava sem fazer nada; gosto de aprender, a empresa era recente, o dinheiro faz falta, e comecei a montar pivôs. Estive lá 4 ou 5 meses. Foi duro, a trabalhar das 6 da manhã até às 7 ou 8 da noite. Mas ganhava bem.

Por que saiu entretanto?
Temos que voltar atrás. Isto é antes de eu ir para Badajoz, para a Academia do Benfica. Os vinhos também. A academia do Benfica e ser PT durou apenas uns meses. Agora tenho novos desafios profissionais. Tenho uma parceria na criação e desenvolvimento de negócios, através da rede de contactos internacionais que fui criando, na área do imobiliário. Estamos a criar um consultoria de negócios imobiliários. Entretanto tenho uma marca desportiva, a Padany, que me patrocina, dá-me roupa.

É a primeira vez que se vai lançar por conta própria?
Sim, com mais duas pessoas. Mas continuo a fazer trabalhos de PT.

Qual é o seu maior sonho?
Neste momento é criar e consolidar esta empresa e ter sucesso. Que este sonho seja real e sustentável.

O que faz o seu filho?
Estuda e joga basquetebol, em Dallas, nos EUA.

Vê-o com frequência?
Uma vez por ano.

Alguma vez ele cobrou-lhe não estar mais próximo dele?
Não. Ele entende. Já houve um ano em que esteve a viver comigo, em Portugal. Julgo que foi há 7 anos, estava ele na 4ª classe. Ficou comigo em Elvas.

Ainda vive em Elvas com a sua mãe?
Sim.

E as tatuagens que tem, quando começou a fazê-las?
A primeira tinha 18 anos, foi feita no Bairro Alto. É um símbolo chinês do meu signo. As outras foram mais tarde. Tenho o nome do meu filho em português e em japonês também. Tenho um outro símbolo, de filho. E não tenho mais.

Qual é a sua maior frustração no futebol?
É não ter feito aquela carreira que imaginei no Benfica.

Acha que não fez porquê?
Primeiro por minha culpa. Se calhar tomei decisões erradas.

Que decisões?
Na altura do Campomaiorense era para ter ficado no Benfica, mas fui para Campo Maior. Deram-me a opção de ficar na equipa principal do Benfica. Só que como jogava pouco e eu precisava de jogar sempre... . Eu sabia que o Campomaiorense era uma equipa que me dava estabilidade para jogar. Pensei, vou jogar e depois volto. Mas depois nunca mais. Aquela instabilidade toda do Benfica da altura também não ajudou nada. Não tem nada a ver com o clube agora.
Quem eram os seus ídolos?
O Mozer, o Valdo, o Veloso, Ricardo Gomes, Neno, Silvino. Ainda joguei com eles.

Qual foi o treinador que mais o marcou pela positiva?
Os do futebol jovem do Benfica marcaram-me todos. O Prof. Arnaldo Cunha, João Santos, Nene, Bastos Lopes, o Mário Wilson...Mas também o Nelo Vingada, Carlos Manuel.

Depois do Mundial do Qatar voltou a ser chamado à selecção?
Às Esperanças sim. Fiz qualificação para o europeu.

Quais foram as maiores amizades que fez no futebol?
O Bruno Caires, que é padrinho do meu filho, o Jorge Andrade que é meu "irmão", o Ramires, o Kenedy, o Diogo que jogou no Sporting, o Beto, o João Pinto, o Nuno Gomes, o Dani.

Também é fã de karaoke como o Jorge Andrade?
(risos) Possa. Ele não deixa cantar ninguém não passa o microfone a ninguém (risos)."

Carlos Kaiser: Não há nada mais brasileiro do que a malandragem. E ninguém foi tão malandro quanto ele

"Esta é a história do futebolista que nunca pisou no relvado e que deu um filme. Este golpista brasileiro foi contratado pelos maiores clubes do país, jogou na Europa e conquistou o carinho de craques nos anos 80, sem saber dar um chuto numa bola

Poucas coisas estão tão enraizadas no futebol brasileiro quanto o conceito da “malandragem”, a capacidade de usar a inteligência para enganar os outros. O país teve a sua cota de futebolistas malandros na história, mas só um pode ser considerado o imperador desta classe. Carlos Kaiser conseguiu jogar em algumas das principais equipas brasileiras durante a década de 80, mesmo sem nunca ter precisado pisar no relvado profissionalmente.
Carlos Henrique Raposo ganhou a alcunha de “Kaiser” - imperador, em alemão -, pela semelhança com Franz Beckenbauer, diz, mas também pode ser por causa de uma marca de cerveja muito popular da época. Vestiu as camisolas das quatro grandes equipas do Rio de Janeiro – Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco –, entre outras. Apesar disso, nunca jogou no Maracanã; possivelmente, nem em qualquer estádio brasileiro. O malandro assinava com as equipas, recebia como um atleta profissional e fazia de tudo para não jogar.
Porque, afinal, não sabia.
Carlos chegava em todas as equipas fora de forma, então era imediatamente colocado para recuperar a condição física, apenas isso. Quando a comissão técnica dos clubes decidia, mesmo assim, colocá-lo para a jogar, era a hora de inventar uma lesão ou até mesmo pedir a um companheiro para lhe dar uma cacetada num treino.
A estratégia de Kaiser era simples: fazia contratos curtos, de cerca de três meses. O tempo era suficiente para fingir longas lesões e ao mesmo tempo receber o bónus da negociação. Muitas vezes, vinha contratado como contrapeso de negociações de outro nomes mais famosos, já que a equipa estava decidida livrar-se dele o mais rápido possível ao notar que ele nunca jogava. Assim, acabou nos maiores clubes do Rio de Janeiro.
Quando foi jogador do Bangu, nem mesmo essa estratégia deu certo. Um dia foi para o banco de suplentes e foi obrigado a entrar por ordem do presidente do clube, revoltado com a derrota da sua equipa por 2 a 0. Sem saída, Kaiser notou que um grupo de adeptos estava a ofendê-lo. Não pensou duas vezes: pulou para as bancadas e brigou com os adeptos.
Acabou expulso antes de entrar.
O problema é que o presidente que pediu que ele jogasse era Castor de Andrade, famoso por ser o barão dos jogos ilegais no Rio de Janeiro. Bom malandro, Kaiser rapidamente achou uma solução antes de fazer o notório criminoso como inimigo.
“Eu disse: ‘pô, doutor. É horrível ouvir dizer que seu pai faz isso ou aquilo, essas coisas que falam do senhor. Você sabe como é para um filho ouvir isso de um pai. Eu acabei brigando e prejudiquei o time”, contou Carlos em entrevista para a “TV Cultura” em 2012.
Segundo ele, o presidente ofereceu um novo contrato após a conversa.
As equipas brasileiras não foram as únicas vítimas. Chegou a jogar no Gazélec Ajaccio, da França. Os adeptos do clube, que oscilava entre a terceira e segunda divisão nacional, estavam eufóricos em receber um suposto craque brasileiro e esperavam ver o seu talento durante a apresentação oficial. Para não mostrar a sua falta de talento, Kaiser começou a chutar bolas para a bancadas. Quando foi pedido que mostrasse sua qualidade, não havia mais nenhuma no relvado.

Começo Sério, Amigo Dos Jogadores e Vida Boémia
Segundo conta, Carlos nasceu no Rio Grande do Sul, mas foi criado no Rio de Janeiro por pais adoptivos. Começou aos 10 anos nas escolinhas do Botafogo e depois jogou no Flamengo. A carreira profissional teve início no Puebla, do México. Diz ele que começou a vida de golpista após a experiência mexicana.
O motivo da vida de golpes é que nunca quis ser futebolista, segundo o próprio. “Com dez anos minha mãe já sustentava a família inteira com o dinheiro que eu recebia do Botafogo e chegava a me bater para jogar futebol. Eu criei um bloqueio. Eu fiz o caminho inverso. Todo mundo queria jogar futebol e eu queria estudar”, disse para a “TV Cultura”.
Muito do sucesso de seu plano teve a ajuda dos próprios futebolistas. Sempre educado, com linguajar de poucas gírias, ficava próximo dos atletas mais famosos. Esses, em contraponto, pediam a contratação do colega aos patrões dos clubes. Claro, os pedidos não eram de graça: Kaiser era o responsável por organizar festas e encontros com mulheres para todos. Todos.
“Ele diz publicamente que era ele que trazia as mulheres e a ‘sacanagem’ para os futebolistas. Era a babá deles. Cuidava de todos e arranjava tudo, isso - as indicações - era o preço dele”, conta ao Expresso Louis Myles, realizador de um documentário britânico lançado neste ano sobre o golpista, ainda sem previsão de estreia em Portugal.
Mulheres é a resposta para a pergunta do motivo de Kaiser lutar tanto para estar no mundo do futebol, apesar de não gostar de jogá-lo. O Rio de Janeiro da década de 80 era o zénite da vida boémia dos futebolistas.
Carlos podia não jogar, mas tinha o típico visual de atleta: era alto e forte, estava sempre de óculos escuros e ostentava um volumoso cabelo. Usava a conversa de ser futebolista e a amizade com famosos para suas conquistas. Afirma que teve casos com muitas famosas, mas não revela quais. Por respeito.
Às vezes, ia um pouco além. O visual descrito era semelhante ao de Renato Gaúcho, um dos principais futebolistas, e boémios, do Brasil. Kaiser gostava de se fazer passar por Renato Gaúcho para chamar a atenção de mulheres e ganhar vantagens nas casas nocturnas cariocas.
“Um dono de boate em Búzios me convidou na praia para ir naquele local à noite. Resolvi aparecer lá com a minha galera. Só que quando eu estava entrando, um segurança me barrou e disse: ‘Você não pode entrar porque o Renato já está lá dentro’", contou o ex-futebolista e agora treinador, em entrevista para o site “Globoesporte”, em 2011.

Mas, Será Tudo Verdade?
É necessário sempre ter cuidado com as histórias de Carlos Kaiser. Nas diferentes entrevistas que deu ao longo dos anos, é comum encontrar contradições. Além disso, simples levantamentos de informações colocam em xeque as anedotas.
Diz, por exemplo, que a briga no Bangu ocorreu em um jogo diante do Coritiba. Durante toda a década de 80, as duas equipas enfrentaram-se cinco vezes, e em apenas numa é que o Coritiba abriu vantagem de dois golos, na Libertadores de 1986. O problema é que o jogo foi no Paraná, e não em Bangu, como conta Kaiser.
Além disso, a história afirma que o treinador do jogo era Moisés, técnico do clube carioca entre 1983 e 1986 e responsável pela contratação do malandro. Porém, o amigo de Kaiser já havia saído da equipa neste jogo; esta foi comandada por Paulo César Carpegiani e não há relato de qualquer transtorno ou expulsão no duelo.
Sobre a passagem pela França, Kaiser tem fotos guardadas com a camisola da equipa e uma carteira profissional da época de 1987/1988. Porém, a revista inglesa “Four Four Two” entrou em contacto com dirigentes do Gazélec e ninguém se lembra dele. Havia um brasileiro no elenco, Fabio Barros, que admitiu ser amigo do golpista e tê-lo indicado para o clube.
Por jogar em muitas equipas de pouco prestígio e numa era de muitos amigáveis extra-oficiais, os casos beneficiam do relato oral e por isso do argumento de falibilidade da memória. Ele guarda reportagens feitas na época sobre sua carreira, porém admite, que muitas vezes se aproveitava da amizade com os repórteres para contar histórias e assim ter mais uma forma de enganar os clubes. 
“Eu não consigo até hoje dizer quais histórias são reais e quais são falsas. Há vários casos no filme em que pensamos que a história era falsa e após outras entrevistas pensamos que são verdadeiras. No final, achamos que a ambiguidade da história era tão fantástica que preferimos manter assim no documentário. Além disso, não conseguimos descobrir tudo apesar de três anos de pesquisa”, afirma o realizador Louis Myles.
A prova de que o golpista realmente passou por clubes cariocas está nos relatos de outros futebolistas. Além de Renato Gaúcho, os campeões mundiais Bebeto e o falecido Carlos Alberto Torres conversaram com o jornalista. Os relatos são sempre com muitos risos e carinho.
“Foi o caso com quase todos que entrevistamos. Mesmo que queria contradizê-lo, amava-o. Não podes fingir o carinho que as pessoas têm por ele”, conta o britânico.
A vida de golpes de Carlos Henrique Raposo acabou no início dos anos 90. Hoje, aos 55 anos, vive como personal trainer – exclusivamente para mulheres –, no Rio de Janeiro. Durante anos evitou os holofotes, mas quando sua história foi recuperada, no começo da década, não escondeu a fama de golpista. Não se arrepende. Na sua visão, era o que os dirigentes mereciam por enganar atletas em um futebol notório por atrasar os pagamentos aos futebolistas.
“O Rio dos anos 80 era uma verdadeira cultura. Era sobre festas, praia e futebol. Tudo era mais relaxado e o jogo menos profissional. Era como um mundo de faz de conta em que apenas assim um personagem como este pode existir. Não acontecerá nunca mais, seja em escala ou duração”, reflecte Louis Myles."

Pontapé de Canto - Liga e sub-19

'Faça-se Newton': e a luz enfim nasceu!

"Alexander Pope, um poeta iluminista inglês e que portanto rescendia de admiração incontida por Isaac Newton, afirmava “muito poeticamente” que Deus, ao criar o mundo, não disse: “Faça-se a luz”, mas “Faça-se Newton” e a luz enfim nasceu. Para os iluministas, a luta das ideias trava-se entre os que muito acreditam e de quase nada duvidam e os que, jungidos ao estudo, muito duvidam e em pouco acreditam. Na Idade Média, asseveravam os iluministas, eram mais os que acreditavam e de quase nada duvidavam. A redenção pela Razão, tão publicitada por eles, não foi, afinal, um anúncio de plenitude, pois que terminou na morte de Deus e na morte do homem. O filósofo brasileiro Sérgio Paulo Rouanet chamava “razão sábia” à razão consciente dos seus próprios limites e que portanto não é nem narcísica, nem individualista, nem arrogante; e apodava de “razão louca” a que não percepciona o quanto de irracionalidade emerge da discurso racional. Mesmo a “razão sábia”, que se fundamentava em Galileu Galilei, Isaac Newton, Augusto Comte e em Descartes, Kant, Hegel e Marx e Freud, não escondeu que a História é uma sucessão de contradições e antagonismos, principalmente quando se diz que “a existência precede a essência” e que portanto o ser humano escapa a qualquer “a priori”, a qualquer definição prévia. E assim, mesmo à luz de uma “razão sábia”, de muita razão físico-química e matemática, “a redenção de nós próprios não a procuramos em nada separado de nós, mas na vivência profunda dos nossos inexoráveis limites” (Vergílio Ferreira, Carta ao futuro, Portugália, 1957, p. 81) E passados quase 300 anos após Voltaire e Montesquieu e Diderot e D’Alembert, o saber que se ousou criar ainda não respondeu às 4 cruciais perguntas de Kant: o que posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? O que é o Homem?
Para os “iluministas” (e sirvo-me do livro de Fernando Savater, “História da Filosofia sem Medo nem Pavor”, nas citações subsequentes, que farei neste parágrafo) o progresso confundia-se com mais ciência físico-matemática e, no que à existência de Deus diz respeito, um declarado agnosticismo. Assim pensava Newton, um génio que ilumina boa parte da História das Ciências e que, na Filosofia, teve discípulos de grande argúcia e originalidade, como (e distingo três tão-só) François-Marie Arouet (mais conhecido por Voltaire) e Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu e ainda Jean-Jacques Rousseau. Voltaire, francês (como afinal Montesquieu e Rousseau), viveu entre 1694 e 1778. Como todos os homens de excepcional craveira intelectual e moral, rodearam-no admirações rendidas, invejas sombrias e ódios sem limites. “Uns versos satíricos e atrevidos, contra o regente de França, valeram-lhe alguns meses na Bastilha, a prisão de Paris. Em seguida, enfrentou um nobre poderoso que ofendera uma actriz, sua amiga, e ganhou uma valente sova, proporcionada pelos criados do rancoroso aristocrata. Então, escapou para Inglaterra, para evitar mais problemas. Essa viagem mudou a sua vida. Encontrou na Grã-Bretanha uma sociedade muito mais tolerante, para com as opiniões religiosas, do que a francesa. “Cada inglês vai para o céu pelo caminho que prefere” comentou admirado”. O seu “Tratado sobre a Tolerância”, as suas “Cartas Filosóficas” (ou “Cartas Inglesas”) e a sua obra restante anunciam a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada, pela Organização das Nações Unidas, em 10 de Dezembro de 1948. No entanto, a primeira grande figura do Iluminismo, em França (cronologicamente anterior ao próprio Voltaire) é Charles Louis de Secondat, barão de Montesquieu. O seu primeiro livro “As Cartas Persas” é uma sátira às pessoas que, em Paris, se julgam intelectual e culturalmente superiores, porque são europeias e não são asiáticas. Mas o livro fundamental de Montesquieu é “O Espírito das Leis”.
Neste livro, estuda Montesquieu as leis que regem a convivência humana – leis que são produto da invenção do ser humano e não de qualquer imposição divina. Sempre a Razão a presidir ao progresso e ao desenvolvimento humanos. Para os iluministas, o real não surge do acaso e da necessidade, mas das conquistas da racionalidade, considerada o supremo atributo (e sirvo-me agora de umas linguagem bem actual) do “Homo Sapiens” e do “Homo Sapiens Sapiens”. Só que com muita razão matemática, com muita razão retórica (típica de todos os ditadores), com muita razão dialética – com tudo isto, há crimes inapagáveis na História. Blaise Pascal (1623-1662) falava, com impressionante insistência das “razão do coração”. Umas vezes, sinónimo de fé e, outras vezes, de sentimento e ainda de “esprit de finesse”, as razões do coração parecem-me uma síntese de sentir, de pensar e de agir. Passo a palavra ao Padre Manuel Antunes que, em tudo o que escreve, se dá todo inteiro, num diálogo vivo e comunicativo com o leitor: “Sendo assim, a expressão “razão do coração” (repare-se que não dizemos “razões do coração”) à primeira vista, paradoxal, aparece como perfeitamente lógica. Designa uma ordem do conhecimento não discursivo mas intuitivo, um sentimento de evidência directa e imediata, uma compreensão interior do indivíduo, uma impressão de certeza mais profunda e intensa do que a dada pela reflexão ou pela demonstração. A razão do coração triunfa em todos os planos, no da ciência como no da fé, no da psicologia, como no da moral, no da vida de sociedade como no da vida de contemplação” (Grandes Contemporâneos, Verbo, Lisboa, 1973, p. 54). No nosso tempo de hipercapitalismo, de hiperterrorismo, de hiperindividualismo, de hipermercado e também de hipermiséria (física, mental e moral), quase desconhecemos a razão do coração. E, sem ela, até o treino desportivo está errado!
Só com a Razão, é em quatro pilares que assenta, hoje, a nossa civilização ocidental: a tecnociência, o mercado, o consumo e o mais feroz individualismo. Só com o génio de Newton, a ciência e a tecnologia atingiram níveis que excederam as previsões mais optimistas. Mas a vida reponta, trasborda e palpita muito para além da tecnociência. Ainda há poucos dias, o Prof. Sobrinho Simões, médico ilustre e um incorruptível paladino da melhor investigação científica, afirmava, em entrevista televisiva que os idosos, que normalmente sofrem de doenças crónicas, precisam tanto, ou mais de ternura, como de fármacos e de exames que envolvem a mais avançada tecnologia. Com o decorrer da vida, os seus baldões, as suas tempestades, as suas alegrias e dores - o amor, a ternura e a amizade são, com toda a certeza, o que mais necessitamos. Não se põe em causa o extraordinário progresso da ciência médica, diz-se tão-só que há qualidades humanas, que estão antes de tudo o mais. Demais, dizem os antropólogos e os etnólogos, que o povo português tem o colorido, a piada, a originalidade, que inventam, dia após dia, novos ritmos, novos horizontes, na alegria de viver. Quando se diz, por aí, que os treinadores de futebol portugueses “sabem” mais do que os treinadores de futebol doutras nacionalidades, não nos esqueçamos de acentuar também que o cidadão português, tenha a profissão que tiver, é amável, gentil, bonzarrão, estudioso, trabalhador, ninguém, como ele, é capaz de mimar com mais graça e com mais candura o povo que o acolheu. No português, os excessos são transitórios e, com facilidade, uma serena confiança se estabelece, entre ele e os íncolas doutros países e nacionalidades. É preciso aferir a realidade, com a Razão. Mas, sem Fé, nada de novo e virginal e original se consegue. Percorra-se o mundo todo. Onde estiver um português ressalta sempre qualquer coisa de irredutível, de específico. Mesmo emigrante, mesmo exilado, ele ressuma a seiva que recebeu dos pais, que o faz um homem diferente, perscrutador de coisas mágicas, imprevistas, objectivas, que os outros ainda não viram."

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