Últimas indefectivações

terça-feira, 7 de julho de 2015

Correu sobre a relva como uma rajada vermelha...

"Moinhos era uma figura! Todo ele anos-70. Foi três vezes consecutivas campeão pelo Benfica, e quantos se podem orgulhar de tal proeza? Era de um tempo muito antes deste tempo bisonho. De um tempo de esperanças e alegrias.
No dia 7 de Outubro de 1974, a criançada voltava às aulas. Eram longas as férias desse tempo. Tanto assim que lhes chamavam «férias grandes». Desconheço se o termo ainda se usa.
Nesse ano de 1974, foi difícil voltar às aulas, lembro-me bem. O país estava confuso e nós também. Entre os professores que apareciam e os que faltavam, havia horas livres a fio para gastar com uma bola e balizas improvisadas. Marcavam-se golos fora das pautas, passava-se administrativamente e também se chumbava por faltas. O Mundo era bem mais divertido do que é hoje e Portugal tinha uma esperança nos olhos das pessoas que foi morrendo com o passar dos anos e a multiplicação infeliz de governantes incompetentes e desonestos.
Na véspera o Benfica dera 4-0 ao Académico de Coimbra, que era a Académica travestida de então, e estava dado a mote para um campeonato ganho com brilho sob o comando de Milorad Pavic, um daqueles treinadores que teve sucesso no Benfica e, em seguida, insucesso no Sporting, pelo que haverá de ter espaço para um croniqueta a propósito num destes dias que se aproxima a passos largos.
Seja como for, adiante... Bate o Benfica o Académico sem apelo nem agravo, e este Benfica terá ao longo da época muito pouco Eusébio, muito pouco Jordão e ainda menos Artur Jorge, o que seria caso para alarme em qualquer linha avançada do Mundo. Mas a máquina funcionava...
Homem do dia: Moinhos.
Até quase poderia dizer homem do ano, com 13 golos no campeonato (melhor marcador do Benfica à frente de Nené com 11) e outros 5 na Taça de Portugal, mas vou ficar-me pelo jogo da Luz, 5.ª jornada.
Moinhos era uma figura. Quem não se recorda dele, procure uma fotografia ou veja aquela que aqui acompanha o texto.
Não enganava: todo ele era anos-70!
Mário Jorge Moinhos Matos, nascido em Vila Nova de Gaia no dia 13 de Maio de 1949. Jogou no Vilanovense e no Boavista antes de vir para o Benfica. Ficou quatro épocas, de 1973 a 1977, sendo de todos elas a melhor esta da qual vos falo.
Contra o Académico (e não é fácil escrever Académico quando é do de Viseu a que se alude...), Moinhos cumpria tão somente o seu terceiro jogo completo desde que assinara pelo Benfica. Pavic gostava dele, como Mário Wilson também gostou no ano seguinte. Aos oito minutos fez o um-a-zero, de cabeça, e preparou-se para afiar as botas. Jordão marcou o segundo, pela meia-hora, e tudo assim ficou até ao intervalo.
O Académico não podia; o Benfica não queria.
Aproveitando o cheque em branco
Ainda me lembro desse jogo. Vagamente, mas lembro. O Benfica podia ter ganho por uma meia-dúzia, se tivesse aproveitado a dinâmica de Vítor Martins, Toni e Simões, mas lá na frente tudo muito perdulário, muito pouco concentrado, não atinando com os buracos concedidos pelo desastrado Brasfemes e deparando com a agilidade temerária de Cardoso.
Lanço mão aos jornais velhos, para não assassinar a memória e levar o estimadíssimo leitor a erros de lembrança sempre tão vulgares.
No Académico jogavam os magníficos Gervásio e Mário Campos, mas já muito devagarinho. E Costa e Vala. E Belo e Gregório Freixo. E ainda entrou esse meu grande amigo de tantas horas, o Vítor Manuel, agora pelos calores de Angola.
Moinhos aproveitou o cheque em branco de Pavic que entregou. Na segunda parte faz mais dois golos e ainda chutou duas bolas nos postes, coisa que lhe poderia ter rendido, se a sorte não fosse madrasta, um dia para nunca mais esquecer. Mas não deixa de ser bela a magia clássica do «hat-trick».
Entraram Vítor Baptista, «o ponta-de-lança da infância sem ternura», como escreveu José Jorge Letria para a voz de Vitorino, e Ibraim, um dos esquecidos das glórias 'encarnadas' que tratarei de lembrar mal a verve me consinta tal empreendimento. Saíram Nené e Jordão. Moinhos ficou, pois claro. A tarde era dele. Gozou-a bem.
Só na jornada 16, em Belém, Moinhos voltaria a marcar: dois golos na vitória por 2-1, com o golo azul a ser de Pietra que não tardaria a vestir de vermelho.
Em 1977, fechado o capítulo Benfica, Moinhos regressou ao Boavista. Três épocas antes de seguir para Espinho onde acabou a carreira.
Fino, quase esquálido, cabeleira longa, meias em baixo, junto dos calcanhares. Era assim Moinhos. Uma figura: repito. Foi campeão pelo Benfica três épocas consecutivas. Quantos se podem orgulhar disso? E com três treinadores diferentes.
Depois foi, como tantos outros, traído pelo coração. Sujeitou-se a um transplante. Teve sucesso. E nós recordamo-lo, como ele merece.
Corria como o vento. Surgia, inesperado, ao encontro conclusivo com a bola. Era de um tempo ainda antes deste tempo amorfo e bisonho. De um tempo em que havia uma alegria nos olhos dos crentes e um futuro que outros haveriam de estragar.
As crianças regressavam às aulas. Aprenderam o quê?
Domingo em Lisboa. Outubro na Luz.
Moinhos correu sobre a relva como uma rajada vermelha..."

Afonso de Melo, in O Benfica

Um baú, muitas terras...

"Desde 1904, o Sport Lisboa e Benfica já teve oito campos. Sete deles encontram-se guardados no Museu.

Ao longo da sua história, o Benfica possuiu diversos campos. A 5 de Outubro de 1941, uma iniciativa única guardou para a posteridade, '(...) um punhado de terra (...)' de cada um. Integrada nos festejos inaugurais do novo campo de jogos, situado no Campo 28 de Maio (nome que o Campo Grande tinha à data, e que manteve até 1948), uma prova de estafeta fez '(...) uma ronda emocionante através de locais onde a colectividade registou períodos áureos, marcando etapas notáveis na sua vida (...)'. O objectivo? Recolher um pouco de terra de cada um dos campos.
A partida início às treze horas e cinquenta e cinco minutos no campo das Terras do Desembargador, em Belém, passou pelo campo da Feiteira e pelo campo da Quinta de Marrocos, ambos em Benfica, pelo campo de Sete Rios, pelo campo das Amoreiras e terminou no novo campo.
Cada 'pedaço de campo' foi recolhido com a ajuda de uma pequena salva de prata e colocado dentro de um pequeno baú de madeira com aplicações em prata, da autoria do ourives Álvaro Ferreira de Oliveira, que os corredores transportaram ao longo do percurso.
O trajecto foi realizado por dez atletas benfiquistas que, de mão em mão, com o auxílio de um cesto metálico, fizeram percorrer pela capital o simbólico testemunho. Pires de Almeida, o atleta mais jovem do Clube, iniciou-o. Seguiram-se-lhe Amadeu Bispo, Tiago Ribeiro, Agostinho Brito, Hermínio Faria, Simões Santos, Manuel Maria, Jaime Miranda e João Miguel.
Após percorrer todos 'os ninhos da águia' entre 1904, o baú entrou no novo campo pelas mãos de Manuel Dias, o mais antigo e consagrado corredor do Clube. 'O público vibrava (...) A ovação não findava (...)'.
Cerca de sessenta anos depois, o precioso baú foi novamente aberto, desta vez para receber a terra do Estádio do Sport Lisboa e Benfica, construído em 1954 e demolido em 2003 para dar lugar ao actual.
No Museu Benfica - Cosme Damião, na área 17. Chão sagrado, encontra-se exposto o símbolo dessa odisseia."

Mafalda Esturrenho, in O Benfica