Últimas indefectivações

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Pintando Nicolau

"(José Maria Nicolau)
Enraizado no imaginário popular, José Maria Nicolau difundiu como poucos o sentimento da 'mística'.

José Maria Nicolau, já de si, era um nome de género redondo. Uma promessa sacrossanta. Nicolau era o dinástico, de perfume czarista, com um ditongo folgado no fim, que puxava por ele em cada estrada de Portugal:
'Vai, Nicolaaaaau!'
Nicolau ia. Como nenhum outro. Viam-no passar os moinhos de vento. As oliveiras e os favais. As casas rústicas. Os aguadeiros e os proprietários abastados. Os sobreiros e as vinhas. Os solares de granito. Os cantoneiros e as pegas. As lavadeiras e as meninas das herdades a cheirar a verbena. Os polícias e os pedintes. Os guardas fiscais e os contrabandistas. Os amantes. Os amoladores e os padres. Os carroceiros. As mulas e as moscas. A canalha, vestindo-lhe a pele, a conduzir pelas veredas um aro ferrugento com uma vara de sabugueiro.
'Vai, Nicolaaaaau!' Nicolau ia.
Como nenhum outro. E, quase sem se dar por isso, foi-se-lhe imperiosamente constelando o peito.

Lenda ou realidade?
O imaginário lusitano espelhava-se nele, que era epopeia a pedal. As costureirinhas disputavam-no, folhetinescas, pespontando-lhe os músculos com olhos-agulha, à Greta Garbo. Os mesmos músculos que era querer. Os mesmos músculos que eram asas e transformavam em nuvem veloz a sua máquina de 14 quilos.
José Maria descansava ao sábado. Nesse dia, sairia à rua com uns sapatos engraxados, talvez os únicos que lhe não conheciam a bicicleta. Nesse dia, teria à mesa, sobre uma toalha quadriculada, vermelha e branca, arroz de tomate e carapaus fritos.
Junto à janela da marquise, forrada a cortinas com rendas de bilros, talvez morasse um canário, de camisola amarela, chamado Ciclista.
No dia seguinte, José Maria arrumava os sapatos e a lata de graxa por mais uns dias. 'Vai, Nicolaaaaau!' Nicolau ia. Como nenhum outro. Correndo nas veias de um Portugal a preto e branco às cavalitas da cor vermelha do ditongo."

Luís Lapão, in Mística

10: o último cromo

"Corria a época 1971/1972. E o investimento decidido na maturidade dos seis anos já vividos era certo e seguro. Cromos.
Não havia semana em que, percorrido o trajecto de casa ao café da freguesia, não depositasse sobre o velho balcão de madeira os poucos tostões mendigados à bondade materna e paterna em troca dos preciosos rebuçados, que, cuidadosamente desembrulhados, revelavam, um após outro, os jogadores principais das equipas em competição no campeonato português de futebol.
A caderneta era então, compreensivelmente, um tesouro que aumentava à medida que cada espaço, antes em branco, era preenchido por um novo jogador, quase sempre só conseguido depois de muitos mais repetidos ou negociado criteriosamente com outros investidores amigos.
Claro está, como sempre sucede com as implacáveis regras do mercado, também eu ia sofrendo as contingências da oferta e procura. E um jogador raro poderia valer uma mão-cheia de outros, rebuçados à parte, evidentemente, degustados, por cautela, logo após a aquisição.
Tamanho empenho justificou, por isso, que o tempo gasto e as despesas feitas fossem tidos por bem empregues. Devo reconhecer, no entanto, uma dolorosa excepção. É que, finda a época desportiva, houve um último cromo que nunca se revelou. E, o que é pior, da minha equipa, e, nessa medida, um dos mais desejados. O número 10 do Benfica. Todos os demais estão lá: 1- José Henrique; 2 - Malta da Silva; 3 - Humberto Coelho; 4 - Rui Rodrigues; 5 - Adolfo; 6 - Jaime Graça; 7 - Nené; 8 - Eusébio; 9 - Artur Jorge; 11 - Simões. Mas o número 10... Esse faltou sempre. E, pergunto-me ainda hoje, qual o rosto que lhe caberia por direito. Vítor Baptista ou Jordão, talvez...
Ainda assim, verdade é que 1971/1972 acabou por se mostrar uma boa época para o Benfica. Feitas as contas, o clube da Luz sagrou-se campeão nacional, venceu a Taça de Portugal, e na Taça dos Campeões Europeus apenas foi eliminado nas meias finais pelo poderoso Ajax. Para o registo da história ficaram também resultados memoráveis, saídos dos embates contra alguns dos principais adversários: 0-3 sobre o Sporting, na 12-ª jornada do campeonato, 6-0 contra o FC Porto, para a Taça de Portugal, e 5-1 contra o Feynoord, no percurso da Taça dos Campeões.
Já quanto à minha velha caderneta, não lhe reconheço menos valor pela ausência de um único cromo. E guardo-a. Guarda-a como um tesouro imenso, capaz de me devolver à memória, de cada vez que a folheio, pedaços de um infância feliz, que o tempo faz passar. Guardo-a também com esperança. Afinal, quem sabe um dia não virei a conseguir aquele último cromo. O cromo do número 10 do Benfica."

Nuno Melo, in Mística

A febre do iogurte

(Tala Simpatia - Iogurte Lisboa)
Os troféus por votos constituem um documento único da popularidade do clube. A Taça Simpatia - Iogurte Lisboa é um ex libris do nosso património.

Na velha Luz, antes do clássico com o FC Porto para o 'Nacional' de 1965/1966 deu-se um histórico rendez-vous. Protagonistas uma senhora taça e um senhor 'capitão'.
A senhora taça trazia vestidas caravelas, cruzes de Cristo e esferas armilares. O senhor 'capitão', acostumado que estava a senhoras taças, nunca vira outra igual.
De fina estampa, como Mona Lisa, a senhora Taça foi desde então despertando a codícia entre quem a visitava. Ir a Belém ver os Jerónimos ou à galaria do clube ver a Taça Simpatia - Iogurte Lisboa passou a ser uma experiência uníssona.
Mas para que tal acontecesse foi primeiro necessário que os portugueses desatassem que nem uns danados a comer iogurte, na expectativa de sublimarem os seus apetites clubísticos. A receita era simples: os consumidores do produto votavam no emblema da sua simpatia e habilitavam-se a garantir 'uma joia da ourivesaria portuguesa para consagração do clube mais querido de Portugal'. Foi assim que a Associação de Futebol de Lisboa, obviamente mais vocacionada para os enredos da bola, se viu dedicada a um verdadeiro romance popular, sob a chancela da já extinta Sociedade de Alimentação Estrela Lisbonense.
Por estranho que pareça, a iniciativa, sem paralelo nos dias de hoje, repercutia uma tradição antiga. Entre 1924 e 1972, a conquista de troféus por votos foi uma constante no palmarés benfiquista, testemunhando de forma única a popularidade do clube e constituindo actualmente um património peculiar da nossa memória.
O legado compõe-se de 81 troféus e, para além da indústria láctea, foram inúmeros os seus promotores, como a imprensa, o teatro e a música, entre outros. Acrescente-se que a senhora Taça Simpatia - Iogurte Lisboa não é caso único de glamour, pois todo o conjunto é rico em estética, design e materialidade.
Caído em desuso, talvez não fosse inoportuno reabilitar o costume, hoje brutalmente facilitado com as redes sociais. Mas garantindo que não se trocassem as senhoras taças, de caravelas vestidas, cruzes de Cristo e esferas armilares, pelas rameiras de pechisbeque que, nos últimos anos - muitas vezes sob encomenda de associações e federações desportivas -, têm vestido a máscara de tesouros.
Carecendo gritantemente do que de mais precioso dava o velho iogurte: vigor e longevidade."

Luís Lapão, in Mística

A nossa Europa

"Na Europa acentua-se o fosso entre meia dúzia de clubes endinheirados ou propriedade de súbitas oligarquias predatórias e os outros que se esforçam por competir, pese embora a desigualdade de meios. Basta olhar para os nossos principais clubes, não obstante todos os desejos, sonhos ou ilusões.
Benfica e Porto só por acumulação de muitas circunstâncias favoráveis poderão almejar vencer a Liga dos Campeões. A sua liga é, de facto, a Liga Europa. E aí a (ingrata) questão que se lhes coloca (e a nós adeptos) é entre um lugar de apuramento na poule da Champions para cobrar um bom pecúlio financeiro ou, não o arrecadando, ter a possibilidade de chegar longe na 2.ª divisão europeia.
Desde que a Taça UEFA virou Liga Europa em 2009/10, Portugal teve 3 finalistas em 8 possíveis (Benfica, Braga e o vencedor Porto) e foi 8 vezes semifinalista (além dos clubes já referidos, o Sporting). É este o palco natural do nosso futebol.
Na Champions das mesmas épocas, o melhor que se conseguiu foi uns quartos-de-final com o Benfica (2012/13) e uns oitavos-de-final com o Porto (2009/10 e 2012/13). Todavia, no ranking (actual) da UEFA, o Benfica ocupa a 6.ª posição e o Porto a 9.ª, ao mesmo tempo que novos colossos de agora ainda não são relevantes nessa lista (p. ex.: PSG é o 20.º, Manchester City o 27.º e Mónaco nem consta dos 453 clubes!).
A democratização clubística no acesso português à Europa é de aplaudir, mas, em regra, segue-se-lhe o reverso da medalha. Sem o Sporting e o Braga, o perigo de retroceder no ranking dos países pode implicar menos e mais difíceis presenças na Champions. Um círculo vicioso."

Bagão Félix, in A Bola

Nico, Nico, Nico...!!!



PS: O título do post é uma tentativa mal feita de homenagear uma famosa música de intervenção... que recorda o assassinato do activista sul-africano Steve Biko!!!

Menino Almeida !!!