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terça-feira, 16 de abril de 2019

Breve teoria da imortalidade

"Pelé está doente, em Paris, dizem as notícias. Há algo errado na história do mundo, no percurso da Humanidade. Não, não acreditem nas notícias. Também disseram que Eusébio tinha morrido, e não é verdade.

A notícia corre. Pelé está doente; Pelé internado. Em Paris, vejam bem Pelé doente? Como? Se Pelé é o atleta perfeito? Vocês viram-no? Saltando como um trapezista na área contrária, voando lá no alto, cabeceando como ninguém, driblando como ninguém, fazendo golos como ninguém.
Algo anda trocado na história do mundo quando um imortal fica doente.
Algo anda errado na Humidade quando Eusébio e Di Stéfano e Cruyff já partiram para a planície da eterna saudade.
'Não morrerão como os restantes', dizia Schopenhauer.
Mas quereria dizer morrer, de morrer mesmo?
Pelé doente. Eusébio morto.
Mas isto faz lá algum sentido? Expliquem-me os doutores da medicina, os mestres das religiões, os sábios de todas as coisas visíveis e invisíveis.
Eusébio, Pelé; Pelé, Eusébio: os dois nomes parecem ligados por um hífen. Às vezes, Eusébio levava a mal a comparação, irritava-se, desabafava: 'Chamam-me o Pelé da Europa? Porquê? Porque não chamam ao Pelé o Eusébio da América do Sul?' Mas uma saudável amizade os uniu desde que se encontraram pela primeira vez, em Paris, no Parque dos Príncipes, num extraordinário Benfica - Santos que marcou a estreia internacional do menino da Mafalala.
Vêem? Paris.
Eusébio zangava-se daquele zangar de passar depressa. Como ele. Vivia com pressa, jogava com pressa, era um homem com pressa.
Eusébio e Pelé em Paris.
Dia 15 de Junho de 1961.
Dia de imortalidade suprema.
Uma luz negra...
Coube a Paris abençoar, lá do alto do Sacré-Coeur, o primeiro encontro Eusébio e Pelé. Benfica - Santos. Benfica campeão da Europa.
'Eu respeitava-os, mas não lhes tinha medo', disse Eusébio, mais tarde. 'Eram bons, eram fantásticos, mas também eram homens como nós. Além disso, entrei com a equipa a perder por 0-4. Deu-me uma certa tranquilidade: vendo bem, não poderia fazer muito pior nem estragar o conjunto. E estava alegre por ir defrontar o Pelé, o mestre do futebol. Contaram-me que o público gritava o meu nome. Não dei por nada. Estava entretido com a bola. Acha que Paris me deu sorte'.
Paris não é um substantivo; é um adjectivo.
Santos, 6 - Benfica, 3; Eusébio, 3 - Pelé, 2. Eusébio venceu Pelé. E só precisou de quarenta e cinco minutos para isso.
No final do encontro, Pelé e Coutinho, os homens que 'inventaram' a tabelinha, vieram ao encontro de Eusébio. O abraço foi grande: o mesmo abraço que se dá a um parceiro, a um igual. Nélson Rodrigues escrevia que Pelé poderia muito bem chegar à beira de um Da Vinci, de um Beethoven, dar-lhes uma palmada nas costas e perguntar:
- Como vai, colega?
Pelé e Coutinho chegaram-se à beira de Eusébio e deram-lhe umas palmadas nas costas. Se calhar, perguntaram:
- Como vai, colega?
Eusébio: 'Quando o Pelé e o Coutinho vieram felicitar-me, junto com outros brasileiros, lembro-me de pensar: 'Isto vai...'.'
Se este episódio não faz parte da história da imoralidade, em que prateleira esconsa esconderam a história da imortalidade?
Pelé doente? Em Paris? Esqueçam: Pelé é eterno como Deus.
E como Eusébio!
Não acreditem nunca quando vos disserem que Eusébio morreu. Nunca! É a mais canalha das mentiras.
Está vivo em Paris, neste preciso momento em que escrevo: defronta Pelé no Parque dos Príncipes.
O Benfica entra em campo com a linha avançada de Berna: Coluna, Santana, José Augusto, Àguas e Cavém. Eusébio fica no banco. Terá de esperar pelo seu momento. E que momento!
O Santos entra em campo com a linha avançada que soa como uma letra de samba: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Aos 20 anos, Pelé está no auge do seu jovem esplendor. Derrama-o em campo: ao intervalo, já os brasileiros vencem por 4-0, como golos de Lima, Coutinho, Pepe e Pelé.
Eis agora um daqueles episódios extraordinários que fazem do futebol um pasto fértil para lendas.
Exaustos por um final de época alucinante, os jogadores do Benfica parecem desistentes. Logo no início do segundo tempo, Pepe marca o quinto golo. A hecatombe é, tudo leva a crer, inevitável.
Eusébio entrara para o lugar de Santana. Ergue-se no centro de uma equipa em destroços com o vigor de um deus antiquíssimo: é Hércules e os seus trabalhos, Atlas com Terra sobre os ombros, Sísifo empurrando a rocha pelas escarpas da montanha.
Eusébio: ninguém mais esqueceria este nome.
Durante meia hora foi verdadeiramente avassalador. Absoluto: é capaz de ser esta a palavra certa. Ao minuto 63 marca o seu primeiro golo; no minuto seguinte, inventa um penálti que José Augusto desperdiça; três minutos depois reduz para 2-5.
O Parque dos Princípes entra em delírio. De dentes cerrados, absorto na bola, no jogo, nos movimentos próprios e alheios, Eusébio é maior do que Pelé, rouba-lhe o protagonismo, força-o um papel secundário, subalterno. Milhares de pessoas, encantadas, enfeitiçadas, gritam o seu nome. Ele não as ouve. A sua obra está ainda incompleta. O seu esforço é monstruoso: por si só, reconstrói um conjunto em seu redor, carrega-o consigo no trilho de uma recuperação espectacular. A luta pode ser desigual, mas ele ignora-o. É um vendaval de músculos, tendões, ossos e cartilagens que desaba sobre um opositor entontecido. O seu entusiasmo desperta a rebeldia dos companheiros. O Benfica domina, agora, os acontecimentos. Eusébio marca mais um golo, faltam dez minutos para o final do jogo, há quem acredite ainda no impossível. Dez minutos não chegam. Pelé é Pelé e teima em recordá-lo àqueles que, por momentos, o esqueceram: faz o 6-3 final.
Vêem? Vêem? Eu bem vos disse. Estão aí os dois, meninos ainda, explodindo saúde. Em Paris! Qual doença? Qual morte?
Não acreditem nas notícias infelizes. Não leiam os obituários. Leiam os poetas. Como Rimbaud:
'Ela foi encontrada!
Quem?
A eter-nidade
É o mar misturado
Ao sol'.
Eusébio e Pelé brilham sempre como sóis.
Não há sóis doentes. Nem mortos."

Afonso de Melo, in O Benfica

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