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segunda-feira, 29 de abril de 2019

A moralidade de Bielsa

"O golo "devolvido" pelo Leeds United, a lição com Hernán Crespo e a memória de Chilavert: “Marcelo Bielsa despreza a vantagem, os atalhos, a má intenção”

O futebol vive de momentos extraordinários. De histórias de grandes vitórias, de épicas derrotas, da finta que faz cócegas, da recepção impossível que a Física não está para explicar, do que não foi e podia ter sido, do golo depois dos 90 minutos, dos futebolistas que levam para dentro do campo o que dança na mente caótica do treinador.
O futebol vive também das mensagens extraordinárias. Do que se diz e do que se é, da coerência. Marcelo Bielsa é um desses homens que, embora nem sempre imaculado (lembram-se do espião?), não subestima a sustentabilidade da moralidade. E tenta levá-la para dentro da cancha e das salas de conferências de imprensa.
Às vezes soa como um guião escrito. Fazem-lhe uma pergunta e o discurso do argentino, muito pausado e lamentavelmente interrompido pelo fiel tradutor, assenta numa qualquer reflexão eterna ou nos livros de Filosofia que deve rapar. O homem, muitas vezes rotulado de perdedor, prefere falar em justiças e merecimentos do que em factos consumados. Ou do que é certo e errado, sem atalhos. Afinal, falamos de um individuo que oferece metáforas como "quem merece mais um carro novo, o que trabalhou para isso ou àquele que saiu a lotaria?" e que ainda meteu os seus futebolistas a apanhar lixo, para compreenderam uma coisa ou duas sobre as gentes da terra e o quanto lhes custa estar no Elland Road.
Este domingo, o seu Leeds marcou um golo beneficiando da lesão e apatia dos jogadores do Aston Villa. Bielsa ordenou a construção de uma autoestrada até à própria baliza. “Não oferecemos o golo, devolvemos”, explicaria no final do encontro (1-1). Como a natureza do jogo era tão importante, ameaçando confirmar a viagem até aos play-off, houve quem o censurasse. Mas também existiram aqueles que concluíram que o treinador seria sempre elogiado e criticado. Nestas coisas já sabemos como é, certo?
Uma das grandes lições da vida de Bielsa, que talvez ajude a perceber esta intolerância ao que é injusto e errado, aconteceu há mais ou menos 15 anos. Foi durante o seu mandato como seleccionador argentino e teve em Hernán Crespo a sua falência.
“Coube-me treinar um grande ponta de lança, que foi Crespo. Era um jogador muito generoso. Tocou-me treiná-lo em dois momentos: quando ainda estava em maturação e, numa segunda altura, quando já estava maduro”, começou a contar aos jornalistas em agosto. O problema é que, num determinado momento, disse-lhe que ele estava feito um senhor jogador, maduro, quando não era assim. “Estava a mentir-lhe. Tentei fortalecer-lhe a autoestima, atribuindo-lhe uma caraterística que eu não achava que ele tinha. Quando o tempo passou e ele amadureceu verdadeiramente, eu disse-lhe: 'Que maturidade tens agora, já não és o mesmo dantes'. E ele pensou: 'Como, se antes tinha-me dito que eu estava consolidado? Enganou-me'”, lembrou Bielsa, que aproveitou para pedir desculpas ao ex-futebolista, atualmente o treinador do Banfield.
Crespo escreveu-lhe uma carta na altura, publicada nas redes sociais, reconhecendo que a mágoa era muito grande. “Foi uma tremenda deceção sentir-me enganado por um líder como você. A tristeza foi tão grande quanto a estima que eu lhe tinha (...) Era e é suficientemente inteligente para saber que o jogador não melhora o seu nível por uma mentira. (...) O mais importante é a lição que deixa a situação que agora recordou. Como nos disse tantas vezes, Marcelo, há que trabalhar com a verdade, sem enganar o outro. Fiquei feliz por ouvi-lo. Um abraço, Hernán Crespo.”
O discurso que engorda a moral está, normalmente, sob suspeita e é escrutinado. Desta vez, depois das estátuas invisíveis levantadas para Bielsa, a fatura chegou do Paraguai, pelos dedos de José Luis Chilavert, o mítico guarda-redes, que recordou no Twitter um episódio de Outubro de 2001. “O loco Bielsa dá aula de fair-play em Inglaterra. E porque permitiu o golo de [Mauricio] Pochettino com a mão contra o Paraguai, em Assunção, com a selecção argentina?”.

“A canção de Mercedes Sosa assenta-lhe bem. Tudo muda para figurar num ambiente tão contaminado. Basta de mentiras no futebol”, concluiu. Ora bem, Chilavert fala disto (40 segundos):



O título da crónica no "El Mundo" dizia: “Polémico empate entre Paraguai e Argentina”. O duelo acabou 2-2: Chilavert, de penálti, fez o primeiro; Pochettino empatou com a mão; Morínigo fez o 2-1 e Batistuta empatou aos 73’. Jogava-se o apuramento para o Campeonato do Mundo de 2002, na Coreia do Sul e Japão, e os argentinos lideravam o grupo sul-americano.
Este domingo, nas páginas do “La Nación”, o editor de Desporto explicou tudo. “Chegou o dia. Com nuances na acção, mas chegou o dia. Marcelo Bielsa despreza a vantagem, os atalhos, a má intenção", escreveu Cristian Grosso. "Quando o rosarino ainda dirigia a selecção, houve um dia em que os media apontavam para um erro arbitral que, supostamente, tinha prejudicado a sua equipa. Essa pergunta, naturalmente, procurava que Bielsa se desculpasse com o árbitro. Mas só se ouviu dele uma declaração de princípios, já que respondeu que moralmente não estava autorizado a queixar-se quando, no jogo anterior, não tinha corrigido que um golo da Argentina foi com a mão. (...) Aquela partida para os play-offs, a caminho do Campeonato do Mundo Coreia-Japão de 2002, terminou 2-2 com o Paraguai. E Bielsa sempre se recriminava por não intervir e por se entregar ao torpor quente da batota.”
Ou seja, explicando sem explicar, Bielsa demonstrou que a moral vive ora na denúncia, ora no silêncio.
Apesar do embaraço que será para muitos treinadores um dia terem de decidir algo como aconteceu no Leeds-Aston Villa, quase que dá para imaginar o alívio de Bielsa. Afinal, e apesar do empate, a justiça ganhou no domingo. E isso é um dia bom para don Marcelo."

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