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quinta-feira, 9 de março de 2023

O velho sonho europeu do Benfica vive nos disparos de Gonçalo Ramos, nas fintas de Rafa e nas pantufas de João Mário


"Numa grande noite de três dos seus principais jogadores, a equipa de Roger Schmidt goleou (5-1) o Club Brugge, confirmando o 2-0 da primeira mão e garantindo presença nos quartos-de-final da Liga dos Campeões. É a primeira vez na era Champions que as águias estão duas épocas consecutivas entre as oito melhores equipas da competição

As últimas décadas do futebol europeu acentuaram desigualdades, com o formato da Liga dos Campeões a favorecer a concentração de dinheiro e poder numa elite de clubes de um grupo restrito de ligas. Num processo dificilmente reversível, as glórias internacionais de outros tempos tornaram-se lenda do passado em Lisboa, Amsterdão, Belgrado ou Glasgow, capitais do futebol condenadas a verem outras cidades repetirem-se nos palcos mais desejados.
À medida que as finais da Champions iam, invariavelmente, tendo Madrid ou Barcelona, Londres ou Liverpool, Turim ou Munique como protagonistas, as noites europeias adquiriram, para as zonas onde outrora se saborearam grandes conquistas, um certo toque nostálgico, um piscar de olho aos tempos em que a ambição não tinha teto imposto pela estruturação do futebol internacional. Mas, às vezes, pode haver serões em que a saudade se torna desejo concreto, hipótese realizável, meta a perseguir.
Roger Schmidt já avisou que “nada é impossível”. E é normal que quem já venceu a Juventus e empatou duas vezes com o PSG pense assim. Nos oitavos-de-final, o Club Brugge foi mero figurante numa campanha que está a devolver a esperança europeia à Luz.
O 5-1 da segunda mão confirma o 2-0 do encontro na Bélgica, numa eliminatória saldada por números de goleada e que, para muitos adeptos do Benfica, terá sido passada mais a pensar em possíveis rivais da fase seguinte do que nas dificuldades que a frágil equipa de Scott Parker poderia causar. Pela primeira vez na era Champions, as águias estão em duas épocas seguidas nos quartos-de-final, uma injeção de moral — e de dinheiro — para um bicampeão europeu, uma potência do período da mais democrática Taça dos Clubes Campeões Europeus.
A noite de festa em Lisboa teve protagonistas semelhantes a boa parte da época: Gonçalo Ramos foi finalizador implacável, com dois golos plenos de instinto; Rafa flutuou por todo o campo, fintando, desequilibrando, apontando o 1-0; João Mário fez uso do seu futebol rendilhado, sempre pronto para as tabelas e frio nos penáltis, chegando aos seis golos na competição, quantidade só superada por astros como Mbappé (sete) e Salah (oito).
Se para o Benfica o perigo da noite poderia residir num certo adormecimento — pelo resultado da primeira mão ou pelo momento difícil do adversário —, os primeiros momentos do duelo evidenciaram que a equipa da casa não se conformaria com a vantagem obtida na Bélgica. Aos 71 segundos, após excelente envolvimento entre Gonçalo Ramos, Rafa e Bah, o dinamarquês cruzou para uma finalização artística de João Mário, num remate de calcanhar. O golo foi anulado por fora-de-jogo de Ramos.
Os visitantes, com três centrais e uma linha defensiva subida, tentaram uma abordagem que alterasse as coisas num momento difícil para o conjunto da Flandres Ocidental, em oitavo na liga belga e só com dois triunfos nos 14 embates anteriores à deslocação à Luz. No entanto, o Benfica aproveitou esse adiantamento para se aproximar com muito perigo de Mignolet. Aos 16’, Florentino, servido por João Mário, atirou ao lado, e aos 20’ o novo médio goleador viu o 1-0 ser evitado, em cima da linha, por Meijer. A pior notícia para os locais no primeiro tempo foi mesmo o amarelo visto por Otamendi, que tira o argentino da primeira mão dos quartos-de-final.
A postura subida dos belgas acabaria por ter um papel importante no lance que desbloqueou o embate. Aos 38', Rafa tocou para João Mário estando ainda a uns 80 metros da baliza adversária. O especialista em penáltis lançou Gonçalo Ramos, que correu durante quase meio-campo. Levantou a cabeça e viu Rafa, disparado, vindo de lá de longe. O supersónico que ganhou pausa a definir recebeu a assistência do ponta-de-lança, contornou Nielsen e, de trivela, fez o 1-0, num lance tricotado por três protagonistas da noite.
Logo a seguir, Gonçalo Ramos recebeu a bola na área, tirou dois adversários da frente e rematou para o 2-0, um golo com marca registada de especialistas na finalização. O Benfica ia para o intervalo tornando o chuvoso dia de Lisboa numa festa antecipada, prolongando o clima que se tem vivido no clube durante praticamente toda a temporada.
A segunda parte foi a história de uma equipa com níveis de motivação no máximo, em que a felicidade de jogar num coletivo de talento potenciado ao máximo parece esconder o cansaço — o onze mantém-se praticamente o mesmo desde o verão —, e outra deprimida, em crise, com um treinador com os minutos contados. Mesmo com a eliminatória decidida, Grimaldo ou Rafa, nomes de estatuto consolidado na Luz, não pararam de sprintar, talvez embalados pelo velho sonho europeu que, naquela festa de golos, parecia de volta.
Aos 57', uma jogada em que tudo foi feito segundo as regras — o passe de primeira de Chiquinho, a temporização de Aursnes, a assistência de Grimaldo — culminou no 3-0 de Gonçalo Ramos, outro lance de instinto do português. São já 23 tiros do pistoleiro pelo Benfica em 2022/23.
Faltava o golo de penálti de João Mário, o convidado que não tem faltado na Liga dos Campeões da equipa de Roger Schmidt. O 4-0 do português foi o quinto golo de castigo máximo do médio na presente edição da prova, um novo recorde na história da competição.
O 5-0 chegaria em novo lance de alto requinte técnico, expresso pelo calcanhar de Ramos para Rafa, a combinação deste com Neves e a finalização de Neres. O Brugge ainda reduziria, num belo remate de Meijer.
O Estádio da Luz despediu-se da equipa com esperança posta na próxima eliminatória. Desde 1989/90, época da última final da Taça dos Clubes Campeões Europeus perdida, que o Benfica não está nas meias-finais da principal prova continental. Depois veio a Champions, o acentuar das desigualdades, a limitação da ambição. Mas, talvez, em 2023 o velho sonho possa renascer nas asas de Ramos, Rafa ou João Mário. Mesmo que não seja concretizado, poder sonhar nestes tempos desiguais já e uma conquista."

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