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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Vimos Enzo passar por cá, de repente. Veremos agora o rasto que deixou


"Seis meses contaram-se desde a pechincha do verão até ao inflacionado efeito colateral do Mundial levar Enzo Fernández de Portugal. Emocionalmente pouco deixa um jogador com tão-só meia época de Benfica, racionalmente era quase impossível rejeitar €120 milhões, mais um para bater o recorde de vendas. A fugaz estadia do médio argentino mostra, mais uma vez, o papel a que os clubes portugueses estão vetados no tela do futebol quando, ocasionalmente, lá conseguirem chegar primeiro ao ouro

A beleza das coisas simples poderia ser o epitáfio dos seis meses de Enzo Fernández em Portugal, paz ao seu semestre. Os singelos 10 milhões de euros pagos pelo Benfica no verão soavam a pechincha ou a rabo na boca da pescadinha: era um golpe negocial de génio lograr uma promessa argentina, titular do River Plate, por tão pouco dinheiro?, ou o médio talvez não fosse tão bom quanto se pintara ao longo do novelesco cortejo esbanjando nas capas dos jornais desportivos? O tempo, fiel respondedor, acenaria à primeira hipótese e acrescentaria uma terceira.
O argentino da perfeita dentição, já um jovem pai e com muita da sua pele feita tela para tinta permanente mostrou ao que vinha ainda na pré-época, com dia ou dois de treino logo aterrou no miolo da equipa a mando de Roger Schmidt. No modelo de pressão constante, vontade em roubar bolas a todo o campo e protagonismo dado sem freios aos dois médios quando o Benfica estava em posse, a Enzo coube o volante da equipa em quase tudo o que de louvável os encarnados colecionam na primeira metade da temporada. E quão precocemente impressionante, se bem que previsível, foi o seu percurso.
A sua queda para definir todas as ações de forma simples e prática, coisas que se pedem a qualquer médio sabendo que são o pedido mais árduo de ser cumprido no futebol, já apregoava Johan Cruijff, foi dando a Enzo um destaque no futebol português: a convivência com um ladrão de bolas mesmo ao seu lado, Florentino, mais resguardado para os momentos de reação rápida à perda, de coberturas defensivas e ofensivas, enalteceu ainda mais as valias do argentino com a bola. E cedo se constatou que era um nome a acrescentar à lista de futebolistas que vemos passar nos grandes de Portugal, de vez em quando, bafejando-nos com a honra de assistirmos de perto a qualidades bem maiores do que o futebol de cá.
Na calma de Enzo a jogar futebol parecia que víamos um tipo a jogar à bola, tal era a reincidente tranquilidade a pentear a bola com a sola da chuteira em cada partida, em não se pôr com truque de maior para levar a sua decisão a sintonizar-se com a execução. O argentino vai para o Chelsea com apenas 29 jogos deixados no Benfica, os quatro golos e seis assistências não vão ser isco para os olhos daqui a décadas, quando quem não o presenciou quiser rebobinar a lista dos nomes que cravaram uma pegada no clube. Factual e emocionalmente, estará correto, meia época não apela ao sentimento de um adepto, não da mesma forma como 120 milhões de euros falam à racionalidade.
A choruda cláusula de rescisão etiquetada como uma adenda à pechincha do negócio feito pelo Benfica no verão parecia estapafúrdia, um desvario congeminado nos escritórios da Luz para salvaguardar alguma investida milionária vinda dos mercados aos quais o clube passara a perna. Afinal, na história só dois médios levaram tanto dinheiro a ser gasto em humanos que calçam chuteiras e pontapeiam uma bola - Paul Pogba, da Juventus para o Manchester United em 2016, por €105 milhões, e Philippe Coutinho, do Liverpool para o Barcelona em 2018, por €145 milhões. Essas impensáveis quantias são esbanjadas em goleadores, fintadores ou nas raridades quase extintas que juntem ambas as definições.
Em Enzo Fernández mora um passador de bola que é um fazedor de jogo por ter quase sempre as ideias no sítio e elas se alinharem com que, nesse momento, será o melhor para a equipa. Um pacote igualmente raro, mais ainda quando um jogador só vive há 21 anos e ainda menos batido é no futebol, talvez por isso a titularidade no Mundial apenas lhe foi concedida ao terceiro jogo da Argentina. Um indivíduo nunca fará uma equipa. A presença do médio no miolo antes errático e permeável da seleção argentina (ajudado por Mac Allister, outro resgatado do banco) muito fez para o país festejar a estampagem da sua terceira estrela de conquistas na camisola.
Levando para uma seleção pintada campeã mundial de fresco o que já fazia bem no Benfica, o instaurou-se um frenesim à volta do eleito melhor jogador jovem do Campeonato do Mundo que, agora, sabia o que Enzo Fernández valia. E como o futebol sempre o faz, ele foi inflacionado, exacerbado e as dúvidas em torno do seu nome também agitadas porque este é um jogo ainda jogada por humanos. Sabendo de muito mais coisas do que as comuns pessoas - jornalistas, comentadores, adeptos -, o cortejo do Chelsea terá mexido no âmago de Enzo, que voou na dobra do ano para a Argentina, faltou a treinos e para fora transpareceu uma perceção de comportamento que costuma empobrecer os jogadores no goto dos adeptos.
De repente, para o argentino estava em causa virar um dos futebolistas mais caros da história meros seis meses após querer ficar mais uns tempos em Buenos Aires, tentando chegar à final da Copa Libertadores com o seu River Plate. O rapaz dos singelos €10 milhões agora era cortejado por €120 milhões, certamente com a hipótese de assinar um contrato que desague um mar de dinheiro na sua conta bancária e a entrar-lhe pelos ouvidos uma conversa de que será protagonista num dos clubes mais ricos do mundo, a jogar na mais atrativa liga do mundo. E voltando aos milhões, como poderia o Benfica bater mais o pé do se diz ter batido.
Meio ano após vender Darwin Núñez por €75 milhões e três e meio contados desde os €120 milhões recebidos por outro jovem adulto por ter jeito para a bola, o Benfica vende por outra quantia que todas as semanas faz tanta gente peregrinar às papelarias de Portugal para arriscar a sorte de números no Euromilhões que sai a quase ninguém. Quando sai é notícia, pela raríssima raridade. A terceira venda estratosférica do mesmo clube português em menos de quatro anos é tão abonatória para as finanças do Benfica como comprovativa serve do papel a que o futebol português, pela louca inflação dos valores, está cada vez mais vetado no mapa da modalidade: tentar descobrir cedo, comprar rápido e barato, fazer render e depois vender caro antes da melhor versão do jogador aparecer.
A fugaz estadia do argentino em Portugal será outra consequência de brincar com a ordem tradicional dos futebóis e de baralhar o calendário com um Mundial encafuado a meio da temporada. Nenhum planeamento de época consegue prever vistas dadas na seleção ou o quão mexida ficará a alma com assédios clubísticos, muitos terão sido os jogadores e as equipas a serem abaladas por efeitos colaterais da última edição da mais vista competição desportiva do planeta. Vimos brevemente passar Enzo Fernández, talvez tenha sido também um vislumbre do que resta ao futebol de cá ser no quadro geral das coisas futebolísticas.
E veremos agora o que será da equipa do Benfica deixada sem o jogador mais influente, sem tempo para tentar a impossibilidade de replicar uma ida invernosa ao supermercado semelhante à que fez no verão, sem plantel para ter um conforto seguro perante a saída do argentino - a qualidade de Fredrik Aursnes será o preenchimento mais previsível e lógico, mas desviar o norueguês do híbrido papel que estava a ter perto de uma ala obrigará a repor protagonismo em David Neres ou a puxar por uma das novas contratações (Gonçalo Guedes). Vimos passar Enzo Fernández, veremos também o rasto da sua passagem."

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