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sexta-feira, 21 de agosto de 2020

As notícias exageradas da morte do tiki-taka

"O criador foi o primeiro a tentar fugir da criatura de tentáculos amplos. Pep Guardiola, ele mesmo, disse um dia que não gostava do tiki-taka. Não era difícil perceber. Pep recusava a ideia de um jogar sonolento, feito de passes sem progressão, com que tantos quiseram encher o rótulo onomatopaico. O tiki-taka do Barcelona, que uma década atrás se tornou lendário, foi essencialmente o expoente vertiginoso do jogo de posição que os espanhóis difundiram mais que quaisquer outros, agarrado a uma nova metodologia de treino que ocupou todos os escalões do maior clube da Catalunha, graças sobretudo a Paco Seiru-lo, o homem mais importante na filosofia do Barça e que favoreceu a ligação directa entre Cruyff a Guardiola. Seiru-lo foi o guardião da filosofia inspirada no holandês e que fez valorizar a fabulosa geração de minions azuis-grenã, com Messi, Xavi e Iniesta a comandar. A ideia matriz colocou a bola como elemento principal do jogo e a inteligência (com consequente autonomia) como característica fundamental do jogador. Nasceu sobre isso não apenas essa geração de sonho como uma influência sobre o jogo como não se anota outra neste século.
Olhar para o que resta do Barcelona, parar a sombra triste que pairou diante do Bayern na Luz, e querer ver ali qualquer tiki-taka, só por muito boa ou muito má vontade, o que neste caso vai dar ao mesmo. O que se viu foi um meio campo trémulo com bola, dois homens de talento banal - Sergi Roberto e Vidal (mais este que o outro, é um facto) - colocados como pesudo-alas apenas para travar os rivais e um ataque obcecado com lançamentos que aproveitassem Suarez (ou Jordi Alba!!!) na profundidade. Sim, tentou construir curto, com risco, e falhou. Mas falhou sobretudo por falta de soluções para ligar jogo até zonas de criação. E construir curto está longe de ser sinónimo de jogo posicional de qualidade. É quando muito um tititi, não chega a tiki-taka.
Recuemos: o que definiu historicamente o melhor jogar catalão foi que os jogadores conseguissem ter a bola e ser protagonistas em qualquer jogo, e conseguissem igualmente pressionar alto e recuperar rápido após a perda. E que tivessem a paciência com bola de aguardar o momento certo para accionar a aceleração dos seus jogadores mais explosivos (de Henry e Eto´o a Pedro Rodriguez, Suarez e ao próprio Messi). E mais o que essas equipas do Barça faziam antes de todas e hoje tantas pretendem fazer: construir com risco, envolver nisso os guarda-redes, procurar centrais capazes de se assumir com bola, laterais que seja mais que corredores de fundo e não joguem apenas ao longo da linha, médios defensivos que também são ofensivos, alas que também sabem jogar por dentro e em espaços mais curtos, pontas de lança que se relacionem com o jogo e não só com o golo. Sugiro ao meu estimado leitor que releia este parágrafo que agora termina pensando na actual equipa do Bayern de Munique. Está lá tanta coisa, não está?
Não, não é só a influência que Guardiola deixou na Alemanha, é muito mais que isso naturalmente, que o jogo muda e o que Hansi Flick acrescentou ao jogar deste Bayern, para sermos justos, não tem comparação com o que se viu nos anos anteriores. Claro que o Bayern tem jogadores admiráveis do ponto de vista atlético, que garantem arrancadas arrebatadoras, mas a marca de água da equipa, e que a transforma mesmo em rolo compressor, está bem mais no cérebro que no músculo. Até nos incríveis aceleradores que são Gnabry ou Davies há uma qualidade de decisão que os distingue dos puros velocistas. E ao comando da orquestra, mesmo no coração do jogo, até está um minorca, minorca fabuloso, seguramente hoje um dos melhores médios do mundo. Thiago Alcântara é a prova nominal, e táctica, de como é possível encontrar em Munique verdadeiras heranças de Barcelona. E depois é a audácia de juntar Muller a Thiago quando se tem apenas três unidades no eixo central ofensivo, e mais a opção por Alaba a central. E ainda há Kimmich, que é o melhor lateral mas também um médio fantástico e com liberdade e intuição raras para surgir a finalizar. É de talento que se fala, de gente que pensa bem antes de executar de igual modo. Uma sugestão de exercício final: pegar no onze do Bayern e perceber, homem por homem, que há talento criativo em todos, talvez descontando Boateng mas incluindo Neuer. E ainda há Coutinho e Coman de fora, entre outros. E ver como a bola sai fácil, tantas vezes ao primeiro toque, de uns para outros. Se apurarem o ouvido talvez dê para ouvir o barulho desses toques. Será parecido com tiki-taka."

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