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sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Medalheiros: a falácia dos números...

"Realizar-se-ão os Jogos Olímpicos de 2020 em 2021? Ainda não o sabemos. Sabemos no entanto que Portugal terá uma comitiva de cerca de 70 a 80 atletas. Previsões de há um ano estimavam duas medalhas e doze diplomas (lugares entre o quarto e oitavo lugar).
No Rio de Janeiro, em 2016, tivemos 92 atletas (18 eram de futebol). O “projecto” incluía 12 “atletas com potencial de medalha” (aos quais se juntava a selecção de futebol)… Portugal regressou apenas com uma medalha de bronze!
Embora não servindo o medalheiro de uns Jogos Olímpicos como medida da cultura desportiva de um país – já que o COI não reconhece a existência de um quadro de medalhas porque isso criaria uma competição entre países, alegando que não é esse o objectivo dos J. O. – certo é que a comunicação social, nessas alturas, apresenta sempre esses quadros e induz-nos a essa leitura quando nos deveria conduzir para uma análise que se centrasse na razão entre o nosso número de participantes e número de lugares no pódio... correlacionando esta razão com as verbas despendidas para formar os presentes! E talvez fazê-lo também em relação ao número de habitantes do país. Só colocando todas estas variáveis a interagirem entre si poderemos ter uma noção fiável da nossa cultura desportiva. Não sendo assim, o medalheiro só nos mostra a falácia dos números…
Mas o medalheiro é importante – principalmente quando há muitos e bons resultados – para vender a ideia de que o país está bem e de saúde a nível desportivo… quando esses resultados não acontecem o medalheiro cai no esquecimento ou até é escondido. Por vezes até há quem meça com ele o índice da cultura desportiva do país quando o deveria medir por valores mas também por contra-valores, por normas e pelo seu cumprimento mas também pela sua violação, por símbolos e pelo seu enaltecimento (ou não!) e, por fim, por crenças, quer sejam elas positivas ou negativas.
Vejamos um exemplo concreto: no Campeonato da Europa de Atletismo de 2018, em Berlim, Portugal participou com 37 atletas tendo conseguido duas medalhas de ouro (Inês Henriques e Nelson Évora). Um 11º lugar no medalheiro... (28 países medalhados, 50 participantes, ou seja, na metade superior da tabela). No entanto, daremos conta que a Grécia, com o mesmo número de participantes, obteve um 6º lugar no medalheiro graças a 3 medalhas de ouro, 2 de prata e 1 de bronze. Dos países com um número de atletas mais próximo daquele da comitiva portuguesa, 35, só a Hungria ficou depois de Portugal (26º lugar apenas com 1 medalha de bronze), dado que a Bélgica com 3 medalhas de ouro, 2 de prata e 1 de bronze alcançou um 5º lugar. Até a Noruega, com 33 atletas (menos atletas que Portugal), ficou à frente do nosso país: 8º lugar com 3 medalhas de ouro, 1 de prata e 1 de bronze (mais pódios que Portugal).
É este o exercício que faz prova de uma literacia desportiva: a razão entre o número de participantes e o número medalhas obtidos.
É necessário um medalheiro? Vai sendo preciso na sociedade actual… dado o sistema económico vigente e a mercantilização do desporto. Jean-Marie Brohm, já em 1993, nos mostrava que “o desporto actual é um subsistema do sistema capitalista do qual ele refracta todos os princípios de funcionamento, todas as tendências, todas as contradições”. É necessário um medalheiro para se manter a reprodução! 
Por que motivos? Porque é necessário para os dominantes continuarem a dominar que se forjem os juízos de valor mais sobre os resultados que sobre os processos… Brohm mostra-nos exactamente isso na sua última obra, “Le Sport-Spectacle de Compétiton”.
Um país em que os seus habitantes são dos que menos exercício físico fazem a nível europeu não pode ter um elevado índice de cultura desportiva. Quando o desporto revela o que de pior possui o ser humano, em vez de mostrar o seu melhor ou de contribuir para a sua formação, essa montra serve uma certa reprodução e em nada melhora o índice de cultura desportiva do país. Não é só o público que deveria saber ler e interpretar as classificações. Dirigentes e responsáveis, quer sejam de clubes, de federações ou até mesmo do Governo, também o deveriam saber.
Tal como naquele conto oriental em que certo Mestre varria o chão quando um monge lhe perguntou: “Sendo vós o sábio e santo Mestre, dizei-me como se acumula tanto lixo em seu quintal?” Respondeu-lhe o Mestre, apontando para o quintal: “O lixo vem lá de fora.”"

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