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terça-feira, 23 de junho de 2020

Elas não se estão a limitar a jogar futebol

"Imagine que, de repente, dezenas de jogadores por hábito convocados para a selecção nacional, ou que já foram internacionais, assinam não por baixo, mas em cima, logo a abrir, uma carta a protestar contra uma decisão tomada pelo destinatário, que no caso é a Federação Portuguesa de Futebol. São 132 nomes e lá para o meio escrito está o de Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro, capitão da equipa de Portugal que, como todos os outros, recebe um salário por representar a selecção, pago pela entidade contra a qual protesta.
Isso chamar-lhe-ia a atenção?
Seria gatilho fácil de premir assumir, pulando a galope da generalização, que basta trocar um nome e dizer que é precisamente o que está a acontecer com a selecção feminina portuguesa. Não é, mas é quase. Cláudia Teresa Pires Neto, a capitã da equipa, não tem e terá nunca a visibilidade de Cristiano Ronaldo. No dia de São Nunca à tarde será capaz de ganhar o mesmo dinheiro que ele. A sua voz é igual à dele no tom e na validade, mas será dez em cada dez vezes menos ouvida, partilhada e citada porque não jogam no mesmo campo, embora joguem o mesmo futebol. O contexto a separar as realidades é enormíssimo, até redundante seria explicá-lo.
Cláudia tem o nome completo entre o grupo de 132 jogadoras que se estão a opor à federação, acusando-a de violar o princípio de igualdade entre homens e mulheres consagrado na Constituição da República Portuguesa, ao propor uma massa salarial limite - elas chamam-lhe teto - de 550 mil euros para cada uma das 20 equipas que, na próxima época, joguem na Liga BPI. Defendem ser um caso de "discriminação de género institucional", algo que a FPF, nos seus estatutos, "não admite".
As jogadoras escreveram um direito de resposta, deram o contexto, argumentaram porquê, indicaram as razões e apresentaram motivos para tentarem convencer a federação a mudar de ideias em relação a uma medida, acreditam, que irá prejudicar o futebol feminino no país.
Trata-se, sobre simplificando, do caso de uma entidade que organiza uma prova achar uma coisa e jogadoras que nela competem, e não só, acharem outra. Tenham ou não razão, ninguém obrigado é a concordar com as convicções, opiniões ou ações do outro. Nem a pensar como o outro, ou a nada dizer se, por acaso, discordar do que o outro faz, diz ou pensa. Muito menos em Portugal, onde a mesma Constituição que as jogadoras invocam garante a todos os cidadãos "o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio".
Elas, as 132 jogadoras, estão a criticar e contestar uma medida por considerarem que prejudicará o futebol feminino em Portugal ao invés de o melhorar. A federação, mesmo que ainda não tenha explicado bem porquê - a Tribuna Expresso já enviou questões à FPF sobre o tema -, imagino que terá proposto essa medida por acreditar no contrário e crer que servirá para desenvolver a modalidade.
São opiniões e visões divergentes, como outras quaisquer, e algures no meio poderá surgir um entendimento. Mas, entretanto, lá apareceu a vontade destas futebolistas em fazerem algo em relação a isso. Como, há pouco mais de um ano, fizeram 28 jogadoras da selecção americana, quando processaram a federação do país alegando, também, discriminação de género.
O que chamou muito mais atenção.
As americanas correm atrás das mesmas bolas, jogam o mesmo futebol, mas também elas não o fazem no mesmo campo que as portuguesas. Hectares de relva há a separá-las, porque as americanas são profissionais a tempo inteiro, já conquistaram quatro Mundiais (incluindo os dois últimos), quatro torneios olímpicos e habitam num futuro longínquo, onde não todas, mas muitas já tinham a força mediática para se pronunciarem, individualmente, sobre o caso que as unia.
As jogadoras portuguesas, por enquanto e aparentemente, optam por não falar singularmente em entrevistas e preferem reagir sob a voz do movimento ("Futebol Sem Género") que criaram.
Entre elas não há, nem Cláudia Neto é, uma Abby Wambach, uma Alex Morgan ou uma Megan Rapinoe. A primeira é a mais titulada jogadora de sempre da mais condecorada selecção que existe, a segunda era talvez a mais popularmente reconhecida jogadora do país até a terceira se catapultar com a honra de defender, publicamente, as causas nas quais acredita, fazendo uso da notoriedade que o futebol lhe granjeou.
O rosa que já lhe pintou o cabelo, os pomposos gestos celebrativos em campo ou o vernáculo para desafiar Donald Trump podem ser ruído ofuscante das palavras que saem de Rapinoe a cada entrevista ou intervenção pública, como estas: “A minha, não sei, grande mensagem é que todas as pessoas têm a responsabilidade de serem participativas na sociedade e torná-la num sítio melhor para toda a gente, em qualquer capacidade que possam”.
Ou esta, quando lhe perguntaram se as jogadoras americanas, como os jogadores, deviam ser apolíticas e limitarem-se a jogar à bola, obedecendo ao infundado e vindo de nenhures cliché que, quase lei não escrita, diz que o desporto não se deve misturar com política, causas e lutas além campo:
“Não percebo, de todo, esse argumento. Querem que sejamos modelos para os filhos deles. Querem que apoiemos os seus produtos. Desfilam-nos por aí. Mas não estamos aqui para nos sentarmos numa montra e olharem para nós. Não é assim que isto é suposto funcionar.”
As 132 jogadoras que protestam contra o limite salarial da FPF não se estão a limitar a jogar futebol."

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