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segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Literatura e desporto

"O jornal A Bola tem uma tradição invulgar no que se refere à relação tão rara entre desporto e literatura

Golos de letra
1. «O peso reconduz os corpos ao início do voo»
Carlos Oliveira
O livro de Vítor Serpa, Golos de Letra - que tive o prazer de apresentar juntamente com outros companheiros - é um belo passeio pela literatura de língua portuguesa e pela forma como esta entra no âmbito do desporto e do futebol.
Vítor Serpa fala dos grandes escritores que se aproximaram do desporto e do futebol, mas não esquece, claro, os grandes jornalistas do desporto que escrevendo sobre bola, corrida e saltos se aproximaram da literatura pelo qualidade da escrita e pela elegância e humor. Tantos jornalistas do jornal A Bola como Carlos Pinhão, claro, mas também Cândido de Oliveira e Vítor Santos, estes últimos, dois dos fundadores que, num outro tom, mais de especialista, também tiveram esse altos cuidados com a escrita; e sim, também de forma evidente, Homero Serpa, pai de Vítor Serpa, lembrando por Mário Zambujal, no próprio dia do lançamento deste livro, como um grande cuidados da língua e do estilo.
Vítor Serpa, aliás, evoca sempre com humanidade, nostalgia, e afecto o seu pai. Lembra, por exemplo, os longos encontros de Homero Serpa com Craveirinha (Craveirinha que escreveu, sobre as muitas vezes em que esteve preso: «qualquer ninguém depois de ser preso torna-se alguém...», numa inteligente e modesta desvalorização de si mesmo e do seu percurso na prisão e fora dela); relatos dessas conversas que muito terão também marcado o filho de Homero, nome que já evoca o primeiro dos poetas gregos.

O salto em altura
2. O livro Golos de Letra tem para  mim algumas absolutas revelações. A maior talvez seja esta: Salto em altura um dos grandes poemas da literatura portuguesa, de Carlos Oliveira (senhor mestre bem além do estrito neo-realismo, que tem livros como Finisterra, clássicos pouco conhecidos, mas essenciais) surgiu pela primeira vez no jornal A Bola. Dois versos desse poema, já clásico:
«O peso reconduz os corpos
ao início do voo»
Um poema notável que deveria fazer parte da biblioteca obrigatória de qualquer leitor.
O jornal A Bola tem realmente uma tradição invulgar no que se refere à relação tão rara entre desporto e literatura. Aliás, só recentemente: dois outros livros de ficção, Há vida nas Estrelas também de Vítor Serpa e A vida dos pontapés de José Manuel Delgado - a quem desejo também a melhor sorte - livros que mostram isso: que a boa tradição e paixão do jornal não se perdeu.
Diga-se ainda que, em Golos de Letra, não se fala apenas de livros.
Há um ritmado capítulo, por exemplo, em que se relembra o modo como a música popular brasileira - desde Chico Buarque a Gilberto Gil, Milton Nascimento e Jorge Ben - entra de frente no futebol. Um dos expoentes máximos é a célebre canção de Chico Buarque:
»Meu caro amigo:
Aqui na terra estão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero lhe dizer é que a coisa aqui esta preta...»
Bem actual a letra, ainda.
Em Portugal, a nível da música, Vítor Serpa lembra Sérgio Godinho, Vitorino, Ary dos Santos.
Vítor Serpa mostra em Golos de Letra como no Brasil há uma aproximação bem mais simples e potente do escritor em direcção ao futebol e ao desporto. Para Vítor Serpa, a relação da «literatura brasileira com o futebol é mais natural, mais íntima» - Nélson Rodrigues, por exemplo, é incontornável - reconhecendo, porém, que as novas gerações de escritores portugueses se aproximam bem mais deste jogo.

Dois atletas da língua
3. Do livro de Vítor Serpa, dois exemplos maiores do Brasil.
João Cabral de Melo Neto, um dos mais perfeitos poetas brasileiros, poeta da síntese e da clareza, que evita, em absoluto, uma palavra que seja a mais. E que falando da bola - da bola, ela mesmo, a esférica - escreveu:
«A bola não é inimiga
como um touro, numa corrida (...)
é um utensílio semi vivo
de reacções próprias como bicho
e que, como bicho, é mister (...)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mão».
Dando aos pés astúcias de mão, mais sintético e denso não se pode ser - um belo resumo do futebol.
João Cabral de Melo Neto que, sobre ele uma vez escrevi que não precisava de escrever nenhum poema pois o seu nome era já um verso: João/Cabral/ de Melo/Neto: nome de sonoridade assombrosa. Um dos grandes.
E outro: Drummond.
Carlos Drummond de Andrade e um poema que Carlos Pinhão constantemente lembrava a Vítor Serpa, como o próprio escreve no livro, poema que fala desse voo do craque:
«instantes lúdicos: flutua
O jogador, gravado no ar
- afinal, o corpo triunfante
da triste lei da gravidade».
«A triste lei da gravidade» está como que fora das leis dos grandes jogos e dos grandes atletas.
Nas costas das camisolas dos grandes atletas e saltadores, mas também na melhor literatura de língua portuguesa, como mostra este livro de Vítor Serpa, poderia, então, estar a frase: isentos da triste e velha lei da gravidade. Dois tipos de voo - literatura e desporto - que se juntam neste livro."

Gonçalo M. Tavares, in A Bola

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