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domingo, 3 de novembro de 2019

Rumo a Tóquio 2020: quando os adversários são o calor e a humidade

"A pouco menos de nove meses de distância dos próximos Jogos Olímpicos (a decorrerem, mais precisamente, entre 24 de Julho e 9 de Agosto de 2020), as preocupações com as condições climatéricas que os atletas irão defrontar começam a agigantar-se.
Para este efeito, começam a contribuir os primeiros “test-events” efectuados e, muito recentemente, a realidade vivenciada nos campeonatos do mundo de atletismo (em Doha), onde puderam ser experienciados, em muitos momentos, quase 32 graus de temperatura com mais de 85% de humidade (o que se pode traduzir em quase 50 graus “percebidos”).
Em Doha, cenários como os da maratona (masculina e feminina) ou das modalidades de marcha (50km e 20km), transformaram-se em verdadeiros exercícios de sobrevivência, assistindo-se à instalação de verdadeiros “hospitais de campanha”, para dar suporte aos atletas, precavendo situações de eventual tragédia, onde um cenário de desidratação grave, poderia facilmente conduzir à morte. 

Factor(es) de Risco
Poderíamos enumerar uma grande diversidade de factores de risco associados à prática desportiva em contextos de elevada temperatura e humidade onde, naturalmente, os mais óbvios se prendem com a natureza de algumas modalidades que, à partida, implicam maior exposição solar “desprotegida” (sem meios de arrefecimento), como são a marcha, a maratona, o triatlo ou as provas de ciclismo de estrada.
Apesar de, nestas modalidades, os riscos de um “choque de calor” e/ou desidratação grave possam ser mais expectáveis, a permanência na aldeia olímpica por todo e qualquer atleta, por um período naturalmente prolongado, onde se espera que haja exposição diária a estas condições nos trajectos que se fazem entre locais de treino e a residência onde se instalam (podendo ter que se percorrer, muito facilmente, mais de 6km a pé por dia, fora as deslocações em autocarros que nem sempre tem as melhores condições de refrigeração), pode conduzir (por vezes, de forma “camuflada”) à instalação gradual de um quadro de desidratação que impactará a performance do atleta, por compromisso do funcionamento fisiológico e cognitivo.
Há já muitos anos que se produz conhecimento cientifico no que respeita à resposta fisiológica (ou à degradação da mesma) dos atletas que competem em contextos com este tipo de adversidade ambiental. Por esta razão, as estratégias de arrefecimento e aclimatação encontram-se cada vez mais desenvolvidas, no sentido de garantir aos atletas que a sua capacidade (às vezes, sobrevivência) será impactada de forma minimizada.
Em termos dos processos cognitivos, pouca evidência científica tem sido produzida quando estas duas variáveis estão presentes, sendo que, o que se apura demonstra disrupção de funcionamento cerebral (redução fluxo sanguíneo, aumento de temperatura cerebral e consequente compromisso de oxigenação), com prejuízo das funções cognitivas (tempo de reacção, atenção, funções executivas, entre outras - Bain et al., 2015).



Que Aliados?
Creio que muitas gerações recordam a final daquela que foi a primeira maratona feminina nos Jogos Olímpicos de Los Angels, onde a atleta Gabriela Andersen-Schies terminou a prova em perfeito colapso.
As imagens impressionam pela determinação da atleta, mas também pela pergunta que certamente assombrará qualquer pessoa ligada à área da saúde quando procuramos imaginar se um organismo perto de colapsar terá, de facto, discernimento q.b. para determinar que, em boa verdade, deve parar de imediato, sob pena de poder haver danos irreversíveis (ou mesmo morte).
Naturalmente que, equipas médicas fortemente preparadas não só para contribuírem com o seu conhecimento para o planeamento do processo desportivo (em parceria com as equipas técnicas), mas também para uma rápida identificação de sinais de desidratação extrema e atempada intervenção, são um enorme factor de segurança. Não são, contudo, suficientes nem a elas deve ser imputada a maior cota de responsabilidade.

Auto-Consciência e Auto-Regulação
Naturalmente que, a responsabilidade reside no próprio atleta. Demorará ainda alguns anos para que se assista a uma indústria (no Desporto de alta competição) que coloque os atletas (e não o espectáculo) em primeiro plano.
Demorará ainda alguns anos para que se assista à capacidade de relegar para segundo plano os muitos milhões garantidos em transmissões televisivas, para salvaguardar os interesses (às vezes, a vida) dos atletas.
Por esta razão, o foco deve ser colocado no atleta.
Urge, então, direccionar a atenção para o que conseguimos controlar melhor - educar/treinar os nossos atletas para o reconhecimento de indicadores de stress e desconforto interno, sejam de natureza fisiológica ou cognitiva.
Os JO de Tóquio assumem-se, desta forma, como os jogos onde, de forma muito evidente, se destacarão os atletas que, para além de um eficiente trabalho ao nível das estratégias de arrefecimento e aclimatação, estejam mais eficientemente treinados do ponto de vista das suas competências psico-emocionais, dada adversidade ambiental esperada.
Atletas que consigam, de forma mais eficiente, “blindar-se” ao impacto negativo que a informação externa produz no seu sistema, através da activação de crenças disfuncionais que despoletarão mecanismos de fuga e evasão (em boa verdade, um “sistema de sobrevivência” natural – uma vez que o que não é natural será competir em tal complexidade climatérica), seleccionando criteriosamente apenas a informação útil para a manutenção de um funcionamento eficiente da sua fisiologia e capacidade de tomada de decisão estratégica (como, por exemplo, definir o andamento pretendido a cada km).

Nota: no passado dia 28, procurando contribuir para o conhecimento já existente nas diferentes federações desportivas, o Comité Olímpico de Portugal desenvolveu uma reunião técnica onde foram discutidas as melhores práticas para a preparação dos atletas para este tipo de adversidade."

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