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domingo, 14 de julho de 2024

E agora José? Ou o homem que mudou de nome


"Altafini foi Mazzola e voltou a ser Altafini. Em 1958 era titular do Brasil até que entrou Pelé…

Alessandria é uma cidade que se ergue na confluência dos rios Tanaro e Bormida. Terra de planície no centro do triângulo formado por Turim, Génova e Milão. É aí que vive Mazzola. Ou Altafini, depende. José João Altafini, de nome baptismal, nasceu em Piracicaba a 24 de julho de 1938. Piracicaba, no Estado de São Paulo, ficou para a História como centro da cultura da cana-de-açúcar e de café. Tem um clube de futebol chamado Esporte Clube XV de Novembro e foi lá que José começou a jogar como avançado antes de assinar um contrato profissional com o Palmeiras em 1956. Um dia um companheiro de equipa fitou-o longamente e decidiu que ele era parecido com o falecido Valentino Mazzola, estrela maior do Grande Torino que desapareceu por inteiro no desastre de Superga, a queda do avião que trazia o super-campeão italiano de Lisboa, onde jogara com o Benfica: 4 de maio de 1949. Ficou Mazzola.
O Mazzola do Palmeiras marcava golos, muitos golos.Era um rapaz poderoso fisicamente, apavorava as defesas adversárias como Átila, o Huno, apavorou o Império Romano-Ocidental e o Império Bizantino. Em duas épocas marcou noventa. No Verão de 1958 era o titular da seleção brasileira que chegou à Suécia para vencer o seu primeiro Campeonato do Mundo. Mazzola era titular; Pelé não. Depois o Universo mudou para sempre. E Edson Arantes do Nascimento, por extenso Pelé, como escrevia sempre Nelson Rodrigues, grande mestre da crónica, mostrou-se a um mundo embasbacado com a sua arte. E o contrário fez-se lei: Pelé era titular; Mazzola não.
Entretanto a Itália tinha-se apaixonado pelo estilo meio brusco meio elegante de José. O convite do Milan surgiu e ele aceitou de bom grado. Só que, em Itália, não havia mais espaço para Mazzolas. Valentino era adorado por toda a gente de todos os clubes e apesar de estar morto continuava vivo. Mazzola só quem fosse do seu sangue, como o filho Alessandro que surgiu dois anos depois no Inter, ou o seu outro filho, Ferrucio, mais novo, que jogou pouco no Inter porque sonhou e cumpriu o sonho de ser presidente do Torino. «E agora José?», perguntaria Drummond de Andrade. E José voltou a ser José. José Altafini. E voltou a marcar golos porque a baliza era o ponto para onde se dirigia sempre o seu olhar de cada vez que a bola lhe chegava aos pés. Na sua primeira época de ‘nerazzurro’ marcou 28 em 32 jogos. Para o ‘calcio’ era muito. Os adeptos gostavam daquele brasileiro com nome italiano que fora campeão do mundo. José João tornou-se um ídolo e irmão-gémeo do golo. Foram dele os dois que bateram o Benfica na final da Taça dos Campeões de 1963. Do Milan passou para o Nápoles e do Nápoles para a Juventus. Os golos iam atrás. Foi ficando velho. Os clubes tornaram-se mais pequenos: Chiasso, Mendrisio, na Suíça. Mas os golos não murcharam. Ainda hoje ocupa o quarto lugar na lista dos goleadores de todos os tempos na Série A com 216 marcados. Mudou de nome e mudou de país: vestiu a camisola da Itália e com ela jogou o Mundial de 1962, no Chile. Era neto de italianos, justificavam os italianos. E ele, triste: «Não fui eu que deixei o Brasil. Foi o Brasil que me deixou».
Altafini era um cavalheiro e um sedutor. Casou em 1959 com Eleanna d’Adio e teve duas filhas, Patrícia e Cristina. Abriu a página dos escândalos quando iniciou um caso amoroso com a mulher de Paolo Barison, seu camarada de balneário no Nápoles. Ninguém gostou. E ele, que era alegre, ficou triste. «E agora, José?/Está sem mulher/está sem discurso/está sem carinho/já não pode beber/já não pode fumar/cuspir já não pode/a noite esfriou/o dia não veio/o bonde não veio/o riso não veio/não veio a utopia/e tudo acabou/e tudo fugiu/e tudo mofou/e agora, José?». Mas José tinha resposta para tudo. Mudou de cidade, trocou Nápoles por Turim, trocou de mulher e casou-se outra vez, com Annamaria. Quando deixou os campos tornou-se um dos mais considerados comentadores televisivos. Sabia histórias e sabia como contá-las. José nunca foi aborrecido durante um dia inteiro da sua vida longa. Tinha sempre um dom de palavra, escorreito, recordava episódios, falava de velhos colegas de balneário como Rivera e Omar Sivori, era o mestre dos paradoxos, dono de lendas ainda por escrever.
Nunca escondeu, no entanto, a mágoa inicial: a de ter sido trocado por Pelé durante o Mundial de 1958. Mas soube escondê-la. E tapá-la com montes de golos por cima até que ela não passasse de uma recordação distante. Em Alessandria, aos 85 anos, é vendedor de relvados sintéticos. Logo ele que foi o mais autêntico dos autênticos. Já ninguém pergunta mais: «E agora José?». Pois… «Você não morre/você é duro, José»."

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