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quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

E mais uma vez Liège sob o voo da águia real...


"Primeira deslocação do Benfica à Bélgica foi a convite do Royal Liège, hoje nos campeonatos amadores. 8 de Setembro de 1961, vitória por 1-0. Golo de Eusébio, que ainda não era completamente imprescindível.

Na semana em que o Benfica foi a Liège, defrontar o Standard para a Liga Europa, se procurarmos nos arquivos descobrimos que foi precisamente Liège a primeira cidade belga que o Benfica visitou ao longo da sua centenária história. No dia 8 de Setembro de 1961, uma semana antes de ir a Montevideu disputar a Taça Intercontinental, frente ao Peñarol, o convite chegou por parte do Royal Football Club de Liège, o primeiro campeão da historia do campeonato belga, clube fundado em 1892, para um encontro particular. Nesse tempo, toda a gente queria ver jogar o campeão da Europa, ainda por cima reforçado com a presença de um jovem que chegara há pouco de Lourenço Marques que se chamava Eusébio da Silva Ferreira. O Benfica arregaçou as mangas e tratou de ganhar o jogo, ainda que apenas por 1-0.

Golo de Eusébio
Eusébio não foi titular. A linha avançada foi composta, inicialmente por José Augusto, Santana, José Águas, Coluna e Cavém. Na segunda parte, Béla Guttmann trocou José Augusto por Eusébio. Santana foi encostar-se à direita. Era necessário deixar à Pantera Negra espaço central para fazer a diferença nos pontapés formidáveis que desferia de que distância fosse.
'Não fico aborrecido por não jogar de início, acreditam', disse Eusébio no fim. 'O facto de entrar só quando sou necessário permite-me ter tempo para observar, de fora, os adversários, entendendo as suas fraquezas. Depois vou-me habituando a marcar os meus golos'.
Delhasse, o guarda-redes do Liège, tinha também algo a dizer: 'Para já, preciso de agradecer aos meus companheiros de defesa, que impediram a temível linha avançada do Benfica de criar mais lances de perigo, não me obrigando a defesas muito complicadas. Quanto ao golo, fui atraiçoado pela forma como a bola chutada por Eusébio, com muita força, bateu no relvado à minha frente, impedindo-me de defender. Talvez pudesse ter feito melhor se esse desvio não se desse. Mas é preciso reconhecer que a equipa portuguesa é fortissima'.
Era fortíssima e foi-o mais uma vez.

A feijões, mas...
Mesmo que o encontro fosse, como se costuma dizer, a feijões, os portugueses levaram-no a sério.
A pouco e pouco, como um torno que aperta o ferro de uma defesa dura e inamovível, o ataque encarnado ia impedindo os belgas de respirarem. Coluna ganhava bolas atrás de bolas, Santana distinguia-se pelos movimentos bem gizados e executados com precisão, José Águas deixava os centrais Brare e Defraigne de cabelos em pé, ao contrário dele próprio, sempre tão impecavelmente penteado.
Eusébio ia sendo Eusébio: lançava-se em golpes repentistas e desferia os seus pontapés fumegantes.
Foi a vitória da calma sobre a sofreguidão; da organização sobre o ímpeto; da classe sobre a força.
Não se pense, no entanto, que foi uma daquelas vitórias de uma perna às costas. O keeper encarnado, Costa Pereira, teve de trabalhar e muito nesse final de tarde em Liège. Um punhado de defesas vistosas fez dele uma das figuras da partida. Respeitosos, os adeptos belgas aplaudiram-no sonoramente quando impediu  lances protagonizados por Kilola, Caraballo e Letawafe de se transformarem em golos.
À sua frente, Neto, Saraiva e Cruz estavam intratáveis.
O Benfica de Guttmann era uma máquina colectiva poderosa e não permitia a adversários que não se aproximassem do seu nível sonharem com vitórias improváveis. Fazia o seu trabalho com a regularidade de um relógio. A visita a Liège apresentou ao público belga um campeão europeu na sua inteira plenitude. Não eram precisos esforços suplementares, os benfiquistas não necessitaram de ir buscar energias ao fundo da alma. Limitaram-se a ser eles próprios e a não facilitarem a vida ao opositor. No fim, ninguém saiu do Campo de Rocourt com dúvidas sobre a justiça da vitória dos portugueses. O Royal Football Club de Liège, que hoje está tristemente afundado nos campeonatos amadores, pôde receber os aplausos dos seus adeptos de cabeça erguida e peito composto de quem cumpriu a sua missão. Ficaria, muitos anos depois, mundialmente famoso por ser o clube contra o qual Mark Bosman abriu aquela guerra que mudou para sempre a face do futebol do universo. E ficaria para a história como a primeira equipa belga a receber em sua casa aquele grupo inquieto de globetrotters que formaram o Benfica que viajou por toda a superfície da Terra, de Sydney a Lima, de Tóquio ou de Bagdade a Tegucigalpa. Com passagem por Liège. Nesta semana, mais uma vez..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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