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quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Responsabilidade individual (em tempo de covid): uma escolha ou uma necessidade?


"Não somos uma cultura que se caracterize por uma parametrização correta dos comportamentos a ativar (ou aumentar) – muito menos pela sua monitorização e consequente validação.
Tal não sucede no contexto académico, onde muitas vezes se valida a “performance competitiva” (ou seja o desempenho em contexto de teste – efetivo ou decorrente de outras “competências” com menos “fair-play”) ao invés do compromisso com todo o processo, deixando os alunos que desenvolvem maior taxa de esforço muitas vezes em “maus lençóis” uma vez que, por razões emocionais (ansiedade) veem os seus desempenhos diminuídos na altura da “prova”.
Nas empresas também não (embora muitas considerem que sim), uma vez que na generalidade das funções os “comportamentos de sucesso”, não só se encontram mal parametrizados (porque privilegiam, por exemplo, unicamente o desempenho individual e não o desempenho de um indivíduo integrado na sua equipa de referência) como tendencialmente não abarcam todas as funções deixando, quase sempre, de fora (por ignorância de quem estabelece os esquemas de avaliação e retorno de benefícios) as funções que, parecendo “invisíveis” (ex: backoffice), são na realidade o “sistema vascular” da organização que permite a sua existência.
Estas, e outras razões que poderíamos aqui integrar (mas não o faremos por razões de extensão do artigo), vão-nos “treinando” desde cedo em dois “princípios” de vida que, indelevelmente, se vão instalando no nosso “software” e que, em boa verdade, em nada abonam para uma noção de responsabilidade vincada:
1 – O esforço não compensa – porque não é validado ou “visto” por quem nos rodeia (indivíduos e/ou organizações), pelo menos no imediato;
2 – Por essa mesma razão, acreditamos que as nossas ações têm um impacto reduzido no meio que nos rodeia (seja porque não retornam a atenção imediata para a qual fomos igualmente “treinados” a procurar, seja porque as consequências das mesmas podem vir num médio/longo prazo que não estamos habituados a valorizar).

Representações sociais de ser ou não responsável
De há um anos a esta parte esta “coisa de ser responsável” começou a ser conotada negativamente, como se se tratasse de uma espécie de “fardo” ou da última característica a ter se se quiser ser o(a) extrovertido(a) da escola/empresa ou equipa.
Como se o(a) tipo(a) “responsável” tivesse que ser igualmente enfadonho(a) – como se preferíssemos privilegiar os momentaneamente arrojados, extrovertidos e, supostamente, divertidos.
Na realidade, o atleta, o aluno, o profissional que teimosamente trabalha na “sombra” (dia após dia) as suas competências e que aguarda o seu “sucesso” (porque acredita no esforço que desenvolve a médio longo termo), muito frequentemente assiste ao surgimento relâmpago de muitos “talentos” extraordinariamente validados no imediato – este fenómeno, muitas vezes, introduz a dúvidas momentâneas no processo, rapidamente extintas porque, também demasiadas vezes, este “talento inato” por este “imediato” se ficam.
Daqui se alimenta também a sua determinação, ao sentir que indo contra o que é “socialmente validado” (demasiadas vezes, privilegiamos, enquanto sociedade, a “chica espertice” de quem dá a volta à regra, de quem não é “apanhado” e de quem, sem esforço, leva a melhor), e com o tempo seu aliado não só verá a sua determinação reforçada como o seu esforço compensado – afinal, uma cultura de talento sem a alavanca da responsabilidade com o trabalho não é, em boa verdade, cultura alguma. 

Responsabilidade em contexto de pandemia – o caso COVID
Pede-se responsabilidade aos cidadãos e ameaça-se com medidas mais restritivas - como se ainda estivéssemos todos na “primária” (o que, já agora, para muitos, em termos de coeficiente emocional, é bem verdade).
Como?
Como se pode esperar que, do nada, as pessoas avaliem o impacto das suas ações com maior seriedade, com a noção clara de que sermos responsáveis é uma necessidade imperativa (de proteção da saúde pública por exemplo) e não uma escolha?
O tal “software” (o que a cultura nos imprime) não está programado para esta realidade – e aqui sim, por esta razão, a implementação de medidas de grupo mais restritivas poderá acabar por ser a única ação possível.
A única ação possível, porque a “programação” a que temos vindo sendo sujeitos impregna a nossa essência nas mais pequenas ações do quotidiano, como sejam, a título de mero exemplo:
Deitar papéis no chão, beatas, máscaras, bater no carro do vizinho, abandonar/maltratar animais... se ninguém vir, não há problema algum;
Porque o treinador, professor ou diretor continua a ser reconhecido socialmente pelos resultados que apresenta e não pelos gritos, mal-estar, humilhação, bullying e lesões (físicas e emocionais) que promove;
Porque todos nós, em algum momento das nossas vidas, assistimos já a tudo isto e nada fizemos por considerar que “não ia valer a pena”... a nossa ação não iria ser suficiente para alterar a situação.

A oportunidade COVID
A situação de pandemia que vivenciamos traz-nos desafios múltiplos que, necessariamente, deveriam empurrar-nos enquanto indivíduos, organizações e sociedade para uma profunda reflexão.
O que fazemos bem e devemos manter? Que características temos andado a treinar? Que “softwares” temos instalado nos jovens e nas instituições que irão governar o nosso futuro?
O que podemos fazer agora? O que podemos fazer desde já? Quais são as micro-ações que podemos desde já implementar?
Como posso desencadear na minha casa, na minha organização e na minha comunidade ações que possam trazer visibilidade ao esforço desenvolvido, à responsabilidade que é escolhida e não imposta? 
Como posso proteger os “ditos responsáveis”, validando os seus comportamentos e ancorando o seu esforço com a aquisição de competências alcançadas? Validando as suas características como algo a que deve ser dada visibilidade em contexto de grupo e não algo que deve guardar para si (a eterna questão dos líderes, isolados, de tarefa e os líderes afetivos que angariam a simpatia das equipas – e que, muitas vezes, as colocam em sub-rendimento).
Como posso aproximar-me dos tais momentaneamente “arrojados” (os tais “lideres afetivos”, principalmente se estivermos a falar de crianças/jovens) e fazê-los entender que não precisam atuar tais “coreografias” para animar a vida dos adultos que têm à sua volta (e que, por isso, validam o seu comportamento fazendo-o confundir com afeto) e que, na realidade, o entusiasmo e desafio genuínos vêm da confiança alavancada pelo esforço de longa duração envolto, muitas vezes numa capa de invisibilidade?
A resolução desta pandemia recoloca a importância das coisas no local certo – no indivíduo e nas suas pequenas escolhas diárias, que resultam num exercício necessário de responsabilidade consigo próprio e com o outro.
Por esta razão, o desafio que permanece será sempre: Como manter o indivíduo no centro da equação? É que, em bom rigor, ele esteve sempre lá (dos temas mais leves aos mais fraturantes da nossa sociedade) ... a pandemia “apenas” lhe trouxe essa visibilidade."

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