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segunda-feira, 22 de outubro de 2018

A compreensão antropológica do desporto

"Como não invejo ninguém e a todos (mesmo aos que não me toleram) desejo muitas oportunidades de uma vida fecundante, variada, feliz; porque gosto de transformar o cartesiano penso, logo existo em amo logo existo; porque o processo histórico tem a marca e o movimento da condição humana; porque luto por um mundo igualitário, onde o acesso à cultura e aos bens essenciais da vida tenham a mesma plataforma de partida; porque em criança e em rapaz, em correrias doidas, pelas freguesias lisboetas da Ajuda, de Belém e Santo Amaro, em busca palpitante e radiosa, procurei a liberdade – quando, hoje, converso, ou escrevo, sobre desporto, tento ser (e sempre) um ensaísta comprometido com um mundo onde as novas técnicas significam uma perfeita identificação com os anseios de mais liberdade, de mais igualdade, de mais fraternidade.
Quero nomear um mundo novo para, nomeando-o, o recriar e, recriando-o, ajudar com a modéstia dos meus recursos à sua transformação. De facto, não surgem novas palavras, nem novas ideias, nem novas ciências, nem nova tecnologia, sem um mundo nascituro, sem o anúncio de uma dialéctica ínsita no real, que clama por mais Conhecimento, por mais Liberdade e mais Justiça. E que também clama por uma nova linguagem que saiba dizer o que não nasceu ainda. De facto, só se diz o que se julga saber. Na Revista Crítica de Ciências Sociais (nº. 54, Coimbra, Junho de 1999, p. 132) a Profª. Maria Irene Ramalho faz das ciências sociais “uma perspectiva sócio-antropológica sobre diferentes aspectos da sociedade, através de diferentes disciplinas, temas ou instituições – o desporto, o direito, a medicina, a reprodução, a sexualidade, a nutrição, a educação, o ambiente, a motricidade humana, o sofrimento humano, as tecnologias – e que as Humanidades têm expressão apenas enquanto objecto desse mesmo olhar sócio-anropológico. Donde se concluirá que a problematização da relação entre as ciências e as humanidades se resolve justamente pela noção de ciências sociais”.
Porque, no âmbito da motricidade humana (e portanto do desporto) se realiza, sem margem para dúvidas, uma nítida relação humanidades-ciências, também penso, há muitos anos já, que é uma ciência social e humana o paradigma desta área do conhecimento. Anterior às formas físicas e técnicas e tácticas do desporto, está a complexidade humana. Por outras palavras: o desporto é anterior à expressão em que se traduz. Se ficarmos atentos à retórica dos treinadores desportivos, designadamente os treinadores de futebol, que tomam perpétuo assento nas nossas televisões, concluímos, sem dificuldade, que é do ser humano, que os seus jogadores são, com especial relevo para a sua intencionalidade emotiva, que eles referem e realçam. José Peseiro, em entrevista ao Vítor Serpa, director do jornal A Bola (2018/10/13) e um insaciável perscrutador do que de humano há na prática desportiva – José Peseiro desabafou, com apelativas palavras: “Em dois meses, fui treinador, pai, director desportivo, quase tudo”.
E o “pai”, que o José Peseiro foi, revestiu-se de tanta, ou mais, importância, do que os aspectos técnicos e tácticos do treino. Ele não o disse, mas é preciso saber ouvir o não-dito, numa conversa. Quem não ouve o não-dito, não entende a conversa. Tem alcance histórico marcante esta entrevista do José Peseiro – pelo que disse e pelo que não pôde dizer, mas interessa saber ouvir. O guarda-redes Bruno Vale, ex-portista e actualmente a defender as redes do Apollon Limassol, no Chipre, assim retrata o treinador José Mourinho: “”Tinha e penso que ainda continua a ter o grupo com ele, os jogadores estavam com o treinador a 200 por cento, além de termos, na altura, um plantel fantástico”. Em Luís Felipe Scolari, também realçou o seu humanismo: “É engraçado que, quando estive com o Scolari, senti muitas parecenças com o Mourinho. Ele também tinha os jogadores com ele” (in A Bola, 2018/10/20). Quem duvida que, quando se estuda o “fenómeno desportivo”, se colhe esta certeza de que é nas ciências hermenêutico-humanas que nos encontramos?
Mas, insistem alguns munidos de um empedernido positivismo: “E é possível um mínimo de racionalidade e objectividade, nestas ciências?”. A pergunta é frequente, porque o saber universitário vigente mais “conforma” do que “informa” quem por lá anda. Por vezes, o que nele se estuda vem escrito em verdadeiros “catecismos”, onde se identifica conhecimento científico com saber objectivo, não se reconhecendo nas ciências uma função crítica e problematizadora. a qual se ensina aos alunos, crédulos e obedientes, pertencer ao domínio das opiniões, dos juízos de valor. Nascem, assim, duas áreas do conhecimento antagónicas: a Verdade e o Valor. A Verdade do saber institucionalizado e que os Governos e as Multinacionais aplaudem e apoiam; e o Valor das necessidades e das aspirações das pessoas, onde parece não encontrar-se, nem racionalidade, nem objectividade. Poderei, neste caso, lembrar Karl Marx que realça que os produtos capitalistas se definem muitíssimo mais pela característica formal da estratégia de exploração do consumidor e do trabalhador do que pelas virtudes que visam a satisfação das necessidades materiais, culturais, espirituais das pessoas. No desporto de alto rendimento, o “desporto dos milhões”, também, demasiadas vezes, o lucro é o que mais conta e não a saúde e a educação dos atletas. No “desporto-rei”, as revistas “cor-de-rosa” não enganam: um número considerável de “craques”, após o seu trabalho diário de profissionais de futebol, vivem encafuados em ambientes fechados de sexo e de álcool, com total desprezo pela leitura dos grandes escritores ou pela frequência dos espectáculos de autores de talento ímpar e personalidade de excepção. A teorização desportiva não pode ser neutra, deverá antes constituir um modo novo de ver e de viver a vida, incluindo aqui o amor e o sexo, evidentemente. E com a certeza que desse modo se pode ser mais saudável e mais alegre e mais feliz. E (repito-me) a felicidade é o primeiro factor de saúde…
Com a revolução científica do século XVII, a ciência deixou de ser contemplativa, ou teórica tão-só, para tornar-se activa e prática e ao serviço de objectivos que em muito a ultrapassam. Amanhece assim a moderna tecnologia, onde as próprias formas simbólicas da cultura parecem simples produtos da técnica e da tecnologia. Chegou a altura de proceder, segundo Boaventura de Sousa Santos, a “uma hermenêutica crítica da epistemologia” com o objectivo primeiro de desconstruir a razão epistemológica que justifica um conhecimento científico que é rei indiscutível, nas várias instituições - um conhecimento científico, que se globalizou e se transformou numa cultura empobrecedora e alienante. Refiro-me a uma Economia, filha do economicismo capitalista (seja ele americano ou chinês, alemão ou venezuelano) que já por aí se publicita como a “raínha das ciências”. Se acaso me é possível apresentar uma ideia própria, adianto esta: sempre que se contextualiza uma ciência, há mais crença do que conhecimento racional. No desporto. acontece outro tanto, se bem penso.
Posso relembrar o livro Économie et Société de B. Jouvenel: “A nossa sociedade sofre de um mal-estar fundamental, que é de ordem moral e política e que se resume ao facto de a pessoa não possuir poder senão no papel irresponsável de consumidor. É neste sentido que a nossa sociedade é, verdadeiramente, uma sociedade de consumo. Certas pessoas possuem pouco poder de consumo, enquanto outras possuem muito. Esta desigualdade quantitativa é claramente percebida, pois que é a única forma, que temos, de poder individual, não nos dão outra. Não passamos, os que podem gastar mais ou menos, de uma célula de um poderoso Leviatã, de cujas intenções não participamos e em cujo corpo permanecemos como simples estrangeiros, aliás elimináveis, quando for necessário”. Tudo isto se aplica ao atleta e ao adepto, ambos manipulados e alienados. Quero eu dizer: a ciência põe e o lucro dispõe. E a diferença entre treinar e imbecilizar é mínima.
E aí deixo mais um artigo, tentando contribuir a uma compreensão antropológica do Desporto. ”Saber Pensar” e “Aprender a Aprender” não resolve todos os problemas. Aliás, estudar só os problemas também é muito pouco . A superação de um conhecimento especulativo ou de tendência apenas lógica e formalizante é absolutamente necessária. O ensino universitário do desporto não pode realizar-se com a formação de doutores improdutivos, através da didáctica arcaica das aulas expositivas e magistrais. Um ensino de muita teoria e pouca prática é de propensão imbecilizante. Como é também, um ensino que não relaciona as ciências empírico-formais e as humanidades. O notável poeta francês Stéphane Mallarmé encerrou uma inesquecível entrevista a Jules Huret, com uma afirmação que ficou célebre: “Tudo, no mundo, se faz para resultar num belo livro”. O espectáculo desportivo, todo ele, se constitui, pela competição que o anima, por figuras que podem retratar o que há de belo e bom e verdadeiro e justo, na condição humana. Por isso, a necessidade do treinador que saiba propor aos seus jogadores o significado e o sentido da prática desportiva. A propósito, atente-se num comentário de José Saramago, logo depois de um diálogo entre duas personagens de Todos os Nomes: “Ao contrário do que em geral se crê, sentido e significado nunca foram a mesma coisa, o significado fica-se logo por aí, é directo, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por assim dizer, ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direcções irradiantes que se vão dividindo e subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra parece-se com uma estrela quando se põe a projectar marés vivas pelo espaço fora, ventos cósmicos, perturbações magnéticas, aflições”. Há tanta coisa no desporto que faz sentido para dar mais sentido à vida.
O maior responsável pelo divórcio entre o desporto e a cultura é o cientismo que se instalou, no conhecimento científico, a partir de finais do século XIX, com a mania de tentar objectivar e racionalizar todo o mundo humano, como se os sentimentos e os afectos fossem coisa de somenos."

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