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sexta-feira, 18 de outubro de 2024

A Senhora da Gadanha desprezou a filosofia


"Perfumo não foi apenas um dos melhores centrais argentinos de sempre: foi um pensador do jogo

Roberto Alfredo Perfumo era um homem que pensava muito. Na girândola do jogo e na vertigem da bola, ganhava tempo para si próprio. Alimentava ritmos, dava ordens, vigiava os companheiros. Um dia contou: «O meu mestre, Ernesto Duchini, quando me apanhou nas equipas jovens da Argentina, queixava-se de que eu era demasiado individualista. Certa vez, num treino de conjunto, interrompeu o jogo e gritou – ‘¿Quierés jugar solo? Bueno…’ Tirou de campo a minha equipa toda e deixou-me a jogar sozinho contra onze. Em cinco minutos já tinham marcado 15 golos e eu com os bofes de fora». Cresceu aprendendo. Primeiro no Pulqui, uma equipa de Sarandí, a cidade onde nasceu no dia 3 de Outubro de 1942. Depois, no River Plate e no Racing, deram-lhe a alcunha de El Mariscal, O Marechal. E a braçadeira de capitão. Começou por jogar no meio-campo mas recuou para central. Dali via melhor o jogo e podia orientar os camaradas como se montasse um cavalo branco no centro da batalha. Filosofava sobre o tema da liderança numa equipa: «Está el líder de tarea: que es el que tiene la pelota durante el juego; el líder de estrategia: que es el que la recompone o la afirma cuando está detenido el partido; y el líder de vestuario: el caudillo o cacique; todos detrás del gran jefe, que es el entrenador; los demás son todos indios». E acumulava em si uma multiplicidade de estilos.
Foi com ele que o Racing se tornou a primeira equipa argentina a ganhar a Taça Intercontinental, batendo o Celtic. 4 de Novembro de 1967. Roberto reclamava publicamente antes do jogo decisivo, desempate em Montevidéu: «Vivemos um mito. O mito de que os europeus correm mais do que nós. Depois de termos jogado em Glasgow, apesar da derrota, não consegui ver isso. Não, eles não correram mais do que nós. Tivemos medo e nenhuma razão para ter medo».Em seguida colocou as coisas de forma simples se bem que intraduzível: «La única forma de desordenarlos es con garrote. Se van a enojar, y ésa es la chance que tenemos; que se enojen y no jueguen». Quarenta anos mais tarde escreveu um artigo no diário Olé. Nele explicava a maneira como esse Racing tinha sido construído: «No terceiro jogo, o Basile, que jogava a meu lado no centro da defesa deixou-se expulsar de forma ingénua. Quando saiu de campo disse-me: ‘Roberto, toma conta da nossa defensita’. E eu com vontade de o mandar para o mesmo sítio por onde tinha nascido. ‘Ese era nuestro Racing, liderado por Pizzuti, un maestro en el arte de manejar y disciplinar a una manga de hijos de puta que ni sabían en qué cancha jugaban y que estuvieron 39 fechas invictos’».
Em 1974, no Mundial da Alemanha (ainda Ocidental), Perfumo foi o capitão da Argentina no jogo contra a Holanda. Um massacre de 4-0 com dois golos de Crujff mais um de Krol e outro de Rep. A teoria de Roberto caía por terra ao mesmo tempo do que toda a selecção albi-celeste. Os europeus não se limitaram a correr mais como correram melhor e por todo o campo como diabos enraivecidos vestidos de cor-de-laranja. Mais tarde, também filosofou sobre Crujff: «Era impossível controlá-lo porque era ele que te marcava. Aparecia sempre por detrás do seu marcador. Às vezes parecia parado mas nunca se podia confiar nisso. Recebia a bola, levantava a cabeça e arrancava a uma velocidade que nos deixava mortos. Nos primeiros cinco metros era letal. E, na grande-área, encontrava a baliza com uma facilidade incrível. ‘Se te iba y era gol’».
Na Argentina, durante décadas, as palavras de Roberto Alfredo eram escutadas ou lidas com uma espécie de veneração. Tornou-se um comentador inimitável pela forma como construía as suas teorias e as apresentava de uma maneira translúcida, requintada e ao mesmo tempo popular. Em 1997 publicou um livro no qual espelhava toda a sua sabedoria: Jugar al Fútbol. Bíblia de muitos treinadores, jogadores e jornalistas. A morte veio ao seu encontro quando tinha 73 anos e foi muito pouco filosófica: ao sair de um restaurante em Puerto Madero, nos arredores de Buenos Aires, tropeçou num atilho desatacado de um sapato e mergulhou pela escadaria à sua frente. A cabeça rachou-se na dureza de um degrau. A Senhora da Gadanha mostrava, mais uma vez, que não tem respeito por ninguém. Nem por aqueles que amam a filosofia como acontecia com Perfumo…"

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