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quarta-feira, 10 de abril de 2024

Entregues à sorte


"Não sei quanto ao leitor, mas, sempre que vejo muito azar junto, dou por mim a desconfiar se será só isso. Não acredito em bruxaria e opto pelo caminho mais trabalhoso

Ainda há quem acredite numa vitória no campeonato esta época e me diga que o momento atual se deve a uma combinação improvável de fatores vulgarmente descrita como azar. Não sei quanto ao leitor, mas, sempre que vejo muito azar junto, dou por mim a desconfiar se será só isso. Não acredito em bruxaria, portanto opto pelo caminho mais trabalhoso. Tento perceber que azares foram esses.
O azar tem uma característica muito concreta, que é ser relativamente inesperado. A coisa passa-se assim: tentámos tudo por tudo, fizemos aquilo que estava ao nosso alcance, e no final não deu. Foi um azar dos diabos. Tudo isto seria mais ou menos digerível, ou mais fácil de compreender, se os azares não fossem hoje vistos a léguas de distância por grande parte dos que gostariam de o evitar.
Quando perdemos frente ao Boavista no início do campeonato, disseram-me que foi uma noite infeliz e que só não tínhamos goleado por manifesto azar. Eu desconfiei um pouco, mas enfiei a viola no saco. Uns meses mais tarde, dei por mim a pensar que, na vez do azar, tivemos muita sorte em não sofrer uma goleada histórica frente à Real Sociedad. Depois disso, mais uns azares se interpuseram. Houve quem me tentasse convencer da incompetência da arbitragem, como se esse fosse o nosso principal adversário. Houve muita gente que preferiu levantar a cabeça e pensar no próximo jogo. Passam-se mais uns meses e o treinador da minha equipa sai goleado do Estádio do Dragão resignado porque, e passo a citar, «às vezes os adversários são melhores e temos de aceitar». Azar o meu ter ouvido isto e não ter conseguido esquecer desde então. Entre uns jogos e outros, com mais alguns resultados negativos à mistura, por entre vários resultados melhores do que as exibições, lá fomos progredindo à custa da capacidade inventiva de meia dúzia de jogadores, sempre com uma leve sensação de que o nosso orçamento de milhões justificava mais do que uma equipa remendada durante toda a época época, a jogar com médios no lugar de lateral por motivos que ainda hoje permanecem por explicar. Já sei: talvez tenhamos tido azar com o planeamento da época.
Há uns dias falava com um amigo benfiquista sobre a nossa massa salarial por comparação com a dos rivais. O Benfica, que gasta cerca de 116 milhões de euros por ano, gasta mais 40 milhões de euros por ano em salários do que o Sporting, que ocupa a segunda posição deste ranking. O exercício torna-se mais dramático se tentarmos avaliar o que se fez efetivamente com esse dinheiro. Quanto custou ao Benfica, em euros, cada ponto conquistado neste campeonato? E quanto custou nos anteriores? Não convém aprofundar demasiado o exercício, que pode levar à loucura. Imaginem alguém perguntar, por exemplo, quanto custou cada cruzamento ou passe do Jurásek feito com conta, peso e medida? Imaginem aplicarmos isto a cada um dos jogadores do Benfica. É tortuoso, sim, e talvez seja a antítese da simples fruição que me fez gostar tanto de futebol desde criança, mas, como se costuma dizer nas redes sociais, uma vez visto torna-se complicado deixar de ver. E, bem feitas as contas, é assim há mais tempo do que talvez queiramos ver naquelas semanas consecutivas em que a bola entra e o tal azar mitológico parece afastado de vez.
Agora peço ao leitor que considere o seguinte cenário - discutível, mas acompanhe-me. Um clube que não era campeão há décadas e que parecia destinado a continuar assim, viveu um episódio traumático, talvez o pior da sua história. Depois disso, os sócios desse clube escolheram um novo presidente. A pessoa escolhida não tinha grande experiência, mas também não tinha cadastro futebolístico. Com o passar do tempo, esse presidente foi-se afirmando e conseguiu distinguir-se da velha guarda do futebol português em alguns momentos importantes para a defesa do seu clube. Assumiu posições corajosas contra claques e soube usar algum populismo para expor o pior dos dirigentes desportivos em Portugal, como nenhum outro tinha feito e como ninguém fez desde então. Não será exatamente um santo, mas hoje em dia também não aparenta ser tolo. No fundo, adaptou-se na medida do possível, sabendo que é parte deste futebol, quer queira quer não.
Usou os instrumentos que tinha ao seu dispor para reduzir a dívida, avançou com uma renovação da estrutura profissional do clube, fez boas vendas e apetrechou-se financeiramente para ter plantéis mais fortes. Contratou um bom treinador, de impacto imediato, com uma ideia de jogo clara e a capacidade de comunicar nos bons e nos maus momentos. Rodeou-o de pessoas competentes (ou motivadas). Aos poucos, com a receita das vendas e melhor scouting, aprenderam a contratar melhores jogadores. Juntou-lhes a qualidade disponível na formação, apostou no marketing do clube para o abrir muito mais aos adeptos e torná-lo mais desempoeirado. Fez coisas aparentemente simples, mas foram bem feitas e eram necessárias. O seu clube, que pouco vencera nas últimas décadas, prepara-se para vencer o segundo campeonato em quatro anos, podendo chegar esta época a um total de sete títulos em seis anos. Bem sei que tiveram prestações pobres e a ocasional sorte pelo caminho, mas o resultado cumulativo é extremamente positivo para um clube que partiu da posição em que o Sporting se encontrava há alguns anos.
A moral da história? Não é a de que existe um predestinado na presidência do Sporting, nem que qualquer mudança drástica é inerentemente boa, ou que qualquer protagonista da mudança se constituirá como uma alternativa competente a quem veio antes dele, nem mesmo que todas as decisões tomadas hoje no Benfica são erradas. Mas uma pessoa olha para estes anos todos e sente que se perdeu tempo, troféus, exigência, personalidade e organização. O modelo vendedor e o seu aparente sucesso, a par do investimento realizado, sugeriam que a distância face aos adversários iria aumentar, mas no essencial essa distância parece ter encurtado. Há aliás uma sensação de novo riquismo em tudo isto. E há também a sensação de que a sorte que supostamente nos tem faltado dá muito trabalho, trabalho esse que não temos feito na devida altura.
Soma-se tudo e são muitos momentos em que poderíamos ter feito mais. À medida que o tempo passa e os insucessos se repetem - são muitos, com uma historia também ela recorrente - torna-se mais difícil acreditar que as mesmas soluções de sempre vão produzir resultados diferentes. Não me parece que mudar de treinador vá ser suficiente para afastar o azar. E não me parece que possamos continuar a depender de momentos de comunicação cuidadosamente planeados para explicar mercados de transferências, prosseguindo com um estilo de liderança que, regra geral, parece desfasado da realidade vivida pelo clube e pouco ou nada mobiliza a massa associativa. Se mais nada mudar, talvez nos tenhamos de convencer que estivemos e continuaremos mais entregues à sorte do que a uma série de decisões concretas e pensadas, devidamente planeadas para impedir que o azar bata à porte. Quanto ao resultado, já se sabe: a sorte não nos parece ser favorável."

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