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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Por gratidão, tornámo-nos reféns do futebol. No pior sentido possível


"Gratidão é uma palavra bonita, que dispõe bem, e gostamos muito de nos agarrar a ela, mais que tudo, quando o assunto é futebol. Nesse contexto, gratidão é uma espécie de camisa de forças figurativa, que nos impede de tomar decisões pragmáticas ou ter opiniões sem olhar para o passado - e como se o passado fosse o único critério de avaliação possível e aceitável. Aí, somos todos um bocadinho como aquele cãozinho amarelo do meme, sentado numa mesa a beber café enquanto as chamas bradam em volta. This is fine, diz ele, e nós também, na nossa auto-imposta cegueira.
Isto já aconteceu com todos os mais importantes clubes nacionais. E com a seleção. Gente que está longe de estar desprovida de inteligência e discernimento pode ficar algo néscia por causa de futebol, das paixões e dogmas que o futebol cria, quando se olha para ele como uma religião e não como um desporto que, nos dias bons, nos dá histórias lindíssimas para contar.
Por razões de agenda e justiça, vivemos agora a era dos reféns do FC Porto. Ou melhor, reféns de certas pessoas que andam pelo FC Porto, com maior ou menor relevância. A confirmarem-se as suspeitas das autoridades e dos tribunais, os ataques a sócios da oposição durante a Assembleia Geral de novembro foram planeados com antecedência por membros da claque do clube. Câmaras de segurança do Dragão Arena terão deixado de fazer o seu trabalho. A PSP não foi chamada ao local quando a coisa descambou. Dias depois, a residência de um dos candidatos à presidência do clube foi vandalizada e um funcionário atacado com violência. Há pessoas detidas preventivamente neste momento por envolvimento no ataque, são “os mosqueteiros”, diz um deles, assumindo uma importância e um papel que daria vontade de rir se o assunto não fosse tão sério, até porque todos nós, olhando para o lado, permitimos o crescimento destes fenómenos. Na última semana, o cabo de internet da sede de campanha de André Villas-Boas foi cortado.
A presunção de inocência não pode, naturalmente, ser esquecida e até à condenação estamos aqui a falar de suspeitas. Mas para uma considerável franja de adeptos, mesmo havendo testemunhos, gente agredida, vídeos, é tudo um conluio, de uma conspiração, uma trama. O mesmo esquema mental de quem passou pano ao ataque de Alcochete ou aos casos de polícia de Luís Filipe Vieira. É uma manigância dos rivais, dos jornalistas, enfim, gente que não aguenta ver o “clube x” a ganhar, que tem inveja do que o “clube y” já ganhou.
Não ajudará, seguramente, que o presidente do FC Porto, na apresentação da sua candidatura, tenha começado o discurso com uma piadola gaiteira sobre o adversário, por este andar acompanhado de segurança privada e ele não precisar dessas frescuras - é o que acontece a quem vê a sua casa atacada -, ou depois tenha mandado “um abraço a Fernando Madureira e à sua mulher, porque os amigos são para as ocasiões”. Os sócios agredidos, pelos vistos, não tanto assim.
Nesse mesmo dia, Pinto da Costa falou dos “capitais próprios positivos” que a SAD do FC Porto estará para apresentar, algo depois desmentido numa comunicação à CMVM. Afinal, nas próximas contas, os capitais próprios “poderão ficar próximos de um montante positivo”. Pormenores.
Exigimos a políticos, professores, médicos, jornalistas, aquilo que não exigimos ao nosso clube de futebol. Por gratidão, pelo passado, deixámos de obrigar quem está dentro destas estruturas a prestar contas. Como se o futebol fosse um mundo paralelo, onde a impunidade é tolerada."

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