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terça-feira, 14 de novembro de 2023

João Neves, o fiável operário que seduz o benfiquismo: o que dizem os números do médio que transformou o dérbi lisboeta?


"Aos 19 anos e de regresso ao meio-campo, João Neves voltou a ser a figura do Benfica num jogo importante. Incansável, fino e com uma identificação avassaladora com a bancada, o jovem internacional português mantém-se na rota dos holofotes. Assente nos dados da Driblab Pro, a Tribuna Expresso descasca os números do centrocampista numa análise que nem sempre está ao alcance dos olhos

As crónicas, os contos, os folhetins e os livros adoram histórias assim. Improváveis e heróicas. A trama mete um miúdo que nasceu pouco depois do Euro 2004 no meio de feras conscientes do seu lugar no mundo. A tribo, temerosa e cheia de incertezas, olha-o como um iluminado. Ele corre e corre e corre como se a existência dos da sua espécie dependesse disso. Mas não é um mero operário que coloca a fisicalidade ao serviço do amor dos outros. A João Neves não lhe treme o pé. E isso é admirável aos 19 anos, sobretudo num Estádio da Luz onde escorre a irresistível nostalgia da alma partida. O médio marcou na vitória no dérbi de domingo e já o havia feito no dérbi da penúltima jornada da época passada. Sempre com golos fora de horas.
O jovem algarvio tem já 1365 minutos esta temporada, alguns deles a insuflar a bochecha com a língua enquanto decide coisas importantes. Por ser tão fiel a quem é, por ser tão honesto com a profissão e certamente por entender que o lugar onde está é maior do que ele, aceitou trabalhos que não lhe deveriam ter tocado. Roger Schmidt, o treinador que vinha salvar a decência lusitana e que agora conclui que os jornalistas são do FC Porto ou do Sporting quando não gosta de uma pergunta, colocou-o nos últimos tempos na ala direita, para testar o sistema de três centrais. Quem não tem estatuto ou não faz cara feia sofre sempre mais. Mas a opção fala também da inteligência do jogador.
Mesmo com as limitações que sofreria qualquer funcionário longe da sua labuta e secretária tradicionais, o centrocampista nunca deixou de ser dos melhores. É que numa equipa que não funciona valoriza-se sempre o que está na ponta oposta ao medo. E o suor, e o choque. E também o facto de a bola manter a sua forma original. Foi assim com Renato Sanches. E João Neves, um jogador que nasceu para estar na seleção segundo Roberto Martínez, é isso tudo.
“É um adolescente com energia interminável e pés de craque”, escreveu o nosso Pedro Barata, na crónica do jogo. E escreveu mais sobre o futebolista que mistura “precisão e agressividade” por ocasião do golo do empate: “Receção perfeita, remate entre uma multidão de corpos. A celebração foi coerente com o jogar do português: uma explosão de energia, uma sucessão de movimentos. Deslizou de joelhos, gritou para os adeptos, dedicou o momento a alguém da bancada, mil celebrações numa, como ali há vários jogadores num só.” E lambuzou com um beijo a camisola, ahh, o sonho molhado de qualquer adepto.
É incontornável: apesar da felicidade que caiu em cima da cabeça de Schmidt – não há felicidade mais feliz do que aquela que cai do céu aos trambolhões e que respeita o acaso, segundo Bruno Vieira Amaral –, foi a exibição do médio que voltou ao meio-campo que encheu primeiras páginas e a memória dos saciados benfiquistas. Por isto tudo, por tanto, recorremos de seguida aos números da Driblab Pro, uma empresa especializada em dados, para explicar o que faz no campo o futebolista natural de Tavira.
Nos 1250 minutos que atuou no campeonato e na malfadada Liga dos Campeões destacam-se os valores altos em alguns parâmetros, nomeadamente na construção de jogadas (“xG construção”, que elimina os dois últimos jogadores das jogadas perigosas e confere o peso do médio no jogo encarnado) e na progressão com bola – 14,8 vezes por jogo em que leva ou passa a bola 10 metros para a frente. Ou seja, é um jogador corajoso e fiável a queimar linhas, ajuda a desbloquear o que o jogo coletivo não vai sabendo fazer. Mas o jovem futebolista é figura também nos cortes que faz quando o tentam driblar (72,6%) – ou seja, é chato, chato –, nos cortes (3.32 a cada 90 minutos) e na certeza do passe (86%), isto quando falamos de alguém que às vezes tenta agitar o tabuleiro e acelerar o jogo de formas diversas, arriscando aqui e ali.

A maior surpresa deste gráfico talvez seja o número de bolas longas que faz. O algarvio mete por jogo quase cinco bolas de pelo menos 32 metros. Mete bem metidas, digamos assim, são passes completos. Surpreendendo cerca de zero pessoas, esta espécie de Gavi português (só não é ao contrário porque o espanhol chegou primeiro à ribalta) tem valores altos na pressão individual. E perde poucas vezes a bola perante abordagens defensivas alheias (uma vez por jogo).
Por outro lado, e porque não há máquinas perfeitas, João Neves peca nas chances criadas ou no último passe cheiinho de mel por jogo, convenhamos que não se trata de um criador e magicador de invenções orgásmicas (Sócrates Brasileiro chegou a chamar orgasmo ao golo). Neves é um jogador utilitário com tremenda disponibilidade técnica e física, o que oficializa um pacto imortal com a bancada. Mas também no jogo aéreo, naturalmente, apresenta números baixos, já que tem apenas 1.74m, que até parecem menos, porventura graças à camisola por dentro dos calções, deliberou aqui uma rápida reunião na secção sobre a altura do futebolista da “chama imensa”, como escreveu Pedro Barata na crónica.

Estes valores podem ter sofrido algumas perversões e tropeções de realidade recentemente devido à viagem fugaz de João Neves até ao corredor direito, onde se pedem outro tipo de ações e funções. Mas as imagens em cima não deixam de ser uma fotografia do futebol do jovem médio. Pegando nos números da Driblab que visam apenas esta edição do campeonato nacional, a comparação dos dados de João Neves e Hidemasa Morita, o médio do Sporting, demonstram quão versátil, prestável e bom, na verdade, é o internacional português.
O japonês só supera o rival no número de bolas que (não) perde. De resto, Neves é superior em termos de pressão, bolas longas, progressão da bola, construção de jogo e até na taxa de acerto no passe (90.6% vs. 86.7%). Sem a Liga dos Campeões na equação, os valores de Neves deram um ligeiro salto qualitativo.
O gráfico de Stephen Eustáquio, o centrocampista do FC Porto, já engorda a concorrência a João Neves. É que é realmente curioso ver a austeridade e magreza no desenho do desempenho de Morita, que é obviamente um dos melhores médios do campeonato, cuja função talvez seja mais ligar a equipa, ajudar em momentos de aperto, colocando os craques ou avançados em posições vantajosas.

Eustáquio, por exemplo, está ela por ela com João Neves no que toca a não serem ultrapassados por aventureiros dribladores. Nos cortes e interceções por jogo também não estão longe. O segmento em que o dragão supera o português é, tal como Hidemasa, nas poucas bolas que perde, o que fala sobre segurança, mas também sobre a eventual ausência de rasgo ou risco. Esse tipo de ação também resgata saliva dos que veem os futebolistas com encanto. Quem cria algo, quem quer e tenta criar algo, é mais admirado, desconfiamos.
O canadiano que atuou em dois jogos no Campeonato do Mundo, no Catar, supera João Neves também nas chances criadas por jogo, o que evidencia a influência que Eustáquio foi ganhando no modelo de Sérgio Conceição.
A época está longe de acabar, mas, e apesar da vitória no dérbi, o Benfica parece tudo menos bem resolvido, principalmente na cabeça do treinador, que na época passada mexia pouco ou nada. Agora sucedem-se as experiências, até os saltos de posição dos futebolistas, sendo a maior vítima o faz-tudo Fredrik Aursnes. Mas também João Neves entrou nesse carrossel. Depois do dérbi, que confirma as sensações de clássicos e dérbis passados, dificilmente Schmidt voltará a fazer o mesmo, dispensando para perto do cal a alma da insonsa equipa. É que, lembrando a mítica frase de Pedro Lamy, João Neves tem cara de miúdo mas de futebol percebe ele."

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