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segunda-feira, 29 de maio de 2023

O que parecia inevitável foi mesmo: depois do jejum, Benfica vence o 38.º campeonato da história


"Gonçalo Ramos, Rafa e Grimaldo, que se despediu a chorar enquanto beijava o símbolo, fizeram os golos da vitória do Benfica contra o já condenado Santa Clara (3-0), no Estádio da Luz. Roger Schmidt é o primeiro treinador alemão a ganhar a Liga Portuguesa, sucede assim a Giovanni Trappatoni como estrangeiro campeão

A história estava toda do lado do Benfica. Nunca qualquer bola de futebol testemunhou, no século XXI, um líder do campeonato perder essa condição da penúltima para a última jornada. O histórico contra o já despromovido e dorido Santa Clara, o mesmo clube que esteve na festa do título em 2019, era arrasador para os lisboetas. Mas os sábios do futebol não podem viver mais avisados, então há que debitar internamente a sabedoria de que tudo é possível. Era somente necessário um ponto. E o Benfica, sóbrio e alérgico a aventuras delirantes, conquistou três, depois de bater os açorianos por 3-0, na Luz, e conquistou o 38.º campeonato da sua história. É o oitavo título nacional neste século.
Se em 2019 o Santa Clara resistiu 15 minutos e até “silenciou a Luz”, como contou à Tribuna Expresso João Henriques, o treinador daquela equipa, desta vez foram apenas sete. João Neves e Florentino Luís (ganhou o lugar a Chiquinho), os donos da bola e do miolo, encaminharam a senhora redonda para os pés de Rafa. O veloz e imprevisível futebolista, que ainda mantém a teimosa veia intermitente, meteu em Alexander Bah, que colocou um grande cruzamento beckhamiano na cabeça de Gonçalo Ramos. Golo à 9. O miúdo esticou a seguir o pescoço, cravou os cerrados olhos no céu e aspirou a glória passada daquele lugar. Na flash interview, já com o sabor de campeão no palato, falaria em “sonho concretizado”. Era o cenário ideal para aquecer a festa vermelha. O medo e a ansiedade deixavam de constar na guest list para o estádio que, ao longo da temporada, recebeu quase sempre quase 60 mil adeptos.
O Benfica ia entrando com facilidade na teia do Santa Clara, pouco espessa e mordaz. Fredrik Aursnes, já campeão com o Feyenoord, vai jogando na mesma rotação desde que aterrou em Lisboa, com uma fiabilidade e uma qualidade invejáveis. Alejandro Grimaldo é sempre uma garantia para sair a jogar com qualidade. O futuro futebolista do Bayer Leverkusen marcou o 3-0, de penálti, e chorou agarrado ao símbolo, que beijou como quem está apaixonado e magoado ao mesmo tempo. Pelo meio foi Rafa quem fez um golaço (2-0). Não pela finalização, nada disso, mas pela jogada sublime entre o avançado e João Mário. Utilizando o solidário Gonçalo Ramos como magnético para atrair defesas, foram trocando passes e superando rivais até que Rafa surgiu na cara de Gabriel Batista, um guarda-redes que não teve uma passagem anónima no Flamengo.
Até ao 3-0, aos 60’, o Benfica viveu sempre uma tarde tranquila. O marcador ia engordando, os jogadores não se davam a virtuosismos nem exageros, mantinham a sobriedade. Havia um trabalho para ser feito. As lições ficaram lá atrás e certamente serão muito úteis para a próxima temporada. Depois de ter estado com 10 pontos de avanço, jogando o melhor futebol do país e de voar na Liga dos Campeões, os encarnados quebraram e deixaram-se morder por um fantasma, o FC Porto, na Luz, o instigador da crise. Seguiu-se a eliminação com o Inter na Europa e depois a derrota com o Desportivo de Chaves. Os profetas da desgraça meteram a cabeça de fora.
Mas apareceu João Neves, ou “Aimar” segundo António Silva no balneário pós-jogo, um recuperador de bolas incansável, enérgico facilitador e bom de bola. É inevitável comparar a coragem do miúdo, de 18 anos, com a de Renato Sanches, em 2015/16. Neves, um algarvio de Tavira, talvez seja mais fino e mais sólido taticamente. Recentemente circulou um vídeo nas redes sociais onde João Neves explicava o que tinha de fazer para contornar a pequena estatura. A inteligência é sempre a resposta, coração idem, por isso tão facilmente conquistou o terceiro anel (marcar em Alvalade ajuda…). A certa altura, com uma bola a cair das nuvens, usou o corpo contra um atleta com o dobro do tamanho, fazendo aqui e ali lembrar João Moutinho, e sacou a bola como se tivesse uma colher na bota direita. A beleza também está nestes gestos singelos.
Do outro lado, o Santa Clara ia confirmando o marasmo. Era incapaz de trocar alguns passes, o marcador ia-lhes lembrando o que viveram este ano. A descida de divisão é o pior cartão de visita de todos. Bruno Almeida, no departamento da estética e fineza, ia dando sinais que salvavam a honra dos visitantes. A dignidade esteve sempre presente, pois ninguém baixou os braços, apesar de tudo. Normalmente, estas investidas, poucas, erguidas por Ítalo, Andrézinho e Ricardinho, esbarravam em Nicolás Otamendi, no impecável Morato ou em Odisseas Vlachodimos, a quem chamaram mister clean sheet, a quem foi permitido protagonismo para se sentir parte da festa.
Durante muito tempo, e surpreendentemente, o ritmo era baixo, mesmo com a energia que voava das gargantas dos que taparam as cadeiras vermelhas e brancas. Havia controlo e zero febre juvenil. Era o adulto na sala, como se aquilo bastasse, não matando a sede dos adeptos.
Roger Schmidt, o primeiro técnico alemão campeão no futebol português (sucessor de Giovanni Trappatoni quando falamos de estrangeiros campeões), lançou ainda David Neres, Petar Musa, Gilberto e Chiquinho, o que podia precipitar a equipa para a frente, num ensejo normal de participar em algo grande. Mas a toada manteve-se. Tal como a cantoria da multidão vermelha, que não sabia o que era festejar um título desde 2019, ainda por cima liderando a Liga do princípio ao fim.
O povo da Luz teve ainda a fortuna de celebrar a estreia de Samuel Soares, o guarda-redes das escolas que parecia emocionado na hora de entrar. É certo que faltou António Silva, que mais tarde buzinaria “Benfica” com uma autoridade interessante, mas ganhar um campeonato com as participações de João Neves, Florentino, Gonçalo Ramos e Soares – não esquecendo um mui emocionado presidente que foi apanha-bolas e estrela por ali – é o sonho molhado de qualquer adepto.
“O campeão voltou”, cantaram as gentes durante largos minutos. Passados três anos de jejum, as lágrimas, o suor e o champagne voltaram a regar o relvado do Estádio da Luz."

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