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segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Jogador analógico


"Há mais de duas décadas, ainda durante os anos 90, tive uma ideia genial que prometia alterar por completo o panorama dos jogos de futebol entre amigos: filmar as partidas. Filmar e editar os jogos como se de um encontro profissional se tratasse e, posteriormente, comercializar em CD, campo a campo, equipa a equipa, jogador a jogador, por todo o país.
Era uma espécie de crime perfeito. De uma assentada faria justiça a uma classe remetida à sombra e ao esquecimento e, pelo caminho, acabaria rico, porventura milionário, tão seguro que estava da minha proposta, pois não me passava pela cabeça que existisse algum jogador de fim-de-semana capaz de resistir ao desejo de se ver em campo. A certeza de que todos eles (todos nós), guardaríamos e protegeríamos aqueles discos com a própria vida, se preciso fosse; uma bússola que nos guiaria e iluminaria em dias de nevoeiro e de tempestade; um tesouro que transitaria de geração em geração para que, os nossos filhos, netos e, sobretudo, nós próprios, pudéssemos recordar o jogador que fomos ou poderíamos ter sido.
Contemplara a força e a fragilidade dos meus colegas, descobrira um filão, e estava disposto a explorá-lo, ainda que o lucro não fosse o meu objectivo, repito. Mais do que um negócio ou objecto de vaidade, acreditava que aquelas gravações seriam um exercício de memória. Com o tempo transformar-se-iam em documentos raros. O retrato de um era.
Escusado será dizer que não avancei. A genialidade e a originalidade, tal como um passe de morte, estão tantas vezes na rapidez de execução e nem sempre no gesto em si. Um pouco por todo o mundo houve quem tivesse tido a mesma ideia. E materializou-a. Nos últimos anos, algumas destas empresas criaram, inclusive, serviços que permitem editar o jogo de forma automática, ao segundo, com o objectivo de partilhar aquela jogada, aquele golo ou aquele falhanço através dos smartphones e das redes sociais. Viralizar.
Diz que o negócio tem corrido bem, sobretudo no padel. Vendem o equipamento directamente aos pavilhões que, por sua vez, oferecem um serviço premium aos jogadores, mediante o pagamento de uma taxa extra. Pelo caminho, passam a cobrar mais pelos cartazes publicitários espalhados pelo campo, uma vez que a audiência é maior. Toda a gente ganha. Eles, dinheiro. Nós, jogadores de fim-de-semana, vida.
É bonito, não é? Só que não, como dizem os adolescentes. O mundo evoluiu, eu também, pelo menos assim espero, mas percebi há um bom par de anos que a melhor forma de honrar o jogador de fim-de-semana é mantê-lo longe dos ecrãs.
Todos os jogadores (e quando digo todos quero mesmo dizer todos) vivem numa bolha. Ligar as câmaras é rebentar essa bolha. O vídeo, como qualquer espelho, coloca tudo em perspectiva e o que vemos raramente é o que queríamos ver. Uma coisa é imaginar aquilo que fizemos em campo, outra é aquilo que se fez. O jogador que aparece na imagem é, na maioria dos casos, uma figura pálida, desfocada, deslocada, um homem em duplicado que parece mover-se em câmara lenta sem o toque de bola que justifique o mito. Até a camisola, tão cara, não nos assenta assim tão bem. Os falhanços, sim, são quase sempre épicos, mas a jogada, aquela jogada, não foi assim tão, tão boa. Nunca é. E tudo se desmorona.
Talvez funcione no padel, que é um desporto sem infância.
O jogador de fim-de-semana é matéria e material analógico, anacrónico, uma ilusão, não deve nem pode aparecer na televisão nem nas redes sociais; não deve ser pesquisado, arquivado ou catalogado; não está no Maisfutebol, n’A Bola, no Record, n’O Jogo, no Zerozero, no Transfermarkt, nem sequer no Google; não pode ser nomeado, recordado, criticado ou elogiado a não ser por si próprio, pelos colegas ou pelos adversários.
O jogador de fim-de-semana não é ninguém, existe apenas na nossa cabeça e isso, meus caros, é tudo. É aí, em diferido, no fundo dessa rede furada chamada memória, onde os nossos feitos e defeitos devem continuar alojados. O que se perdeu, perdeu. Reinventa-se. Inventa-se. Faz parte do jogo. E da magia."

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