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segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Dentro-de-jogo


"Meio mundo despertou em sobressalto para os Direitos Humanos com o Mundial do Qatar. Já quando decorreram os Jogos Olímpicos de Pequim em 2008 -- ou as recentes competições de inverno -- estava sonâmbulo. Também durante o Mundial de Futebol da Rússia em 2018 cozeria em sono REM. Normal -- nessa altura ser russófobo não era tão trendy, embora Putin fosse o mesmo. De igual forma, grande parte não deve importar-se nada de ir até ao Egipto (não foi lá agora a COP27 prenha de jactos privados?!) ou de férias ao Dubai. Tão pouco se perturbaram com as injecções massivas de dinheiro chinês ou russo nas equipas europeias. Nessas circunstâncias, já não se desassossegam com os estádios empapados em sangue e com os estilhaçar dos crânios das mulheres, pois não? Do mesmo modo, quantos irão prescindir de assistir aos jogos refestelados nos seus seguros sofás? Que raio de indignação selectiva é esta -- quase tão pujante quanto a revolta por proibir-se a venda de cerveja? Ah pois, chama-se hipocrisia. Enfim, resta-lhes lavar a consciência doando um euro.
É evidente que o Qatar é antro de atentados aos direitos humanos, que o o futebol se transformou numa das maiores indústrias mundiais em promiscuidade com os poderes políticos e doses cavalares de corrupção. Tudo isso é condenável e repulsivo. Mas também é tão óbvio que a questão de "porquê, então, só agora se ergue uma opinião pública e publicada denunciante?" advém pergunta crucial. Será que é porque assim se enfatiza o epílogo do monopólio ocidental?
Como explica Abdullah Al-Arian no New York Times, na crítica-acrítica ao Qatar mora uma visão orientalista no palácio da ignorância. Até a observação mais pertinente a este Mundial, relativa aos trabalhadores, tem sido distorcida. As denúncias da exploração da mão de obra através do kafala esquecem convenientemente que esse sistema foi uma invenção britânica herdada por novos estados independentes e que os países do Golfo não são excepcionais no que concerne ao fluxo global de capital/ trabalho. Ou cessaram as contratações a granel no ocidente para os há décadas designados trabalhos 3 D -- dirty, dangerous and difficult?
Também as alegações de que tudo é artificial nesta competição, incluindo o próprio gosto pela bola, é eurocêntrico e redutor. Aliás, a história do futebol árabe é a história da revolta contra os grilhões colonialistas. O caso do movimento de libertação algeriano -- que formou uma equipa em 1958 como parte da luta contra a opressão francesa --é bem ilustrativo. Há figurantes pagos? Lá estão as virgens ofendidas. sempre houve. O futebol é um desporto amado pelos árabes e, para muitos, esta é uma oportunidade única para assistir ao vivo -- não apenas pelos preços proibitivos dos voos transatlânticos como até por restrições nas fronteiras -- o próximo anfitrião, os EUA, tinha até recentemente um "Muslim ban" que impediria os iraquianos de apoiarem presencialmente. Por isso, milhares deles já compraram passagens para a Copa22. Basta recordar o cinema de Abbas Kiarostami ou Jafar Panahi para confirmar a importância da bola naquela região. E agora ainda mais, até porque a primavera árabe levou ao endurecimento dos déspotas da região, tornando o desporto rei num dos poucos sítios respiráveis onde as gentes ainda podem vibrar e sonhar. Um pontapé de saída."

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