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quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Morreu a alegria dos povos


"Estes são aqueles momentos em que não nos apetece escrever nada. Só o entende quem partilha a paixão pelo Futebol, desde menino, que cresceu a ver o “belo jogo” ser jogado ainda com aquela quase inocência e pureza que só não o era porque estava sempre muita coisa em jogo – demasiadas coisas em jogo num mundo de homens em que nem sempre o respeito é o mote. Hoje morreu um dos últimos baluartes desse futebol, o maior dos seus representantes: Diego Armando Maradona.
Confesso, sem vergonha (talvez devesse ter). No auge de Maradona, lutei muito contra o fascínio que, no meu íntimo, sentia ao ver tudo o que de mágico “El Pibe” fazia em campo. Desde cedo formei um gosto por um futebol mais pragmático, objectivo, de eficiência e implacabilidade. Pelos anos 80, admirava a “máquina musculada” de nome Karl-Heinz Rummenigge. Mais tarde deixei-me arrebatar pela frieza e letalidade daquele que considero, ainda hoje, o melhor “9” de sempre, Marco van Basten. 
Mas havia aquele tipo de cabelo encaracolado, que eu teimava em descartar dos meus ídolos, porque era demasiado rebelde e indisciplinado para caber na minha concepção de futebol eficiente. Estava cego. Mas com os anos passou. E com algum alívio posso hoje dizer que, a tempo, me rendi a um génio. Que era mais do que isso. Era uma espécie de “Deus” da bola, colocado no pedestal dos imortais, não pelos “donos da bola”, mas pela sua verdadeira alma: os povos.


O futebol é uma caminhada. Longa de histórias, ídolos e deslumbramento. Não há geração que não tenha um período, um clube, ou jogador de referência. Mas há muitos “futebóis”. Tal como há muitas sociedades, culturas, classes, religiões. O futebol é o espelho do que somos, da nossa tribo, dos nossos interesses, modos de vida. É o “campo de batalha” de sonhos, cores, nações, ideologias, mas também a impressão digital das raízes de cada um de nós e das nossas origens.
Maradona era o representante do povo argentino, mas não só. Era também o representante maior de todos aqueles que, descalços – felizmente hoje menos descalços -, sonhavam com o “Olimpo”, na rua, na terra batida, no chão coberto de pó, com uma bola de trapos ou, com sorte, com uma bola sim, mas em farrapos, pesada… com o peso de todos os sonhos dos miúdos, na rua, que fantasiavam eles próprios em ser ídolos. Muitos deles para fugir à pobreza, à miséria e ao abandono das suas sociedades. Para meter comida na mesa, dar uma vida digna, uma casa, um futuro aos seus pais, irmãos, família.


Diego era isto tudo, e assumiu-o ao longo da sua vida. “El Pibe” era do povo… representava o povo que conseguiu chegar “lá”. Era o reflexo de cada um dos argentinos do povo, que enchiam as bancadas da La Bombonera ou de qualquer estádio do país das Pampas. Ou de qualquer outro da América Latina. Ou até de Portugal.
Em 1982 estalou a guerra das Malvinas – um arquipélago sob domínio britânico, situado ao largo da Argentina, bem lá no Sul do Atlântico. A humilhação suprema para os sul-americanos, que reclamavam a soberania sobre aqueles territórios. A “mão de Deus”, que se seguiu ao “golo do século”, foi um acto de vingança – não gosto da palavra, mas foi isso mesmo. Nesse jogo fundamental do Mundial de 1986, Maradona foi, mais uma vez, o representante de toda a Argentina, o instrumento da desforra de uma guerra perdida e que feriu o orgulho nacional. Ele sabia-o e nesse dia foi tudo o que que podia ser para bater a “nação opressora”. Foi herói.


Hoje morreu grande parte do futebol puro, rebelde que amamos e que definha sob o jugo da mercantilização, a nova “nação” que oprime o Futebol. E o vazio que deixa nunca será preenchido. Hoje choramos todos, porque hoje somos todos argentinos."

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