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terça-feira, 18 de agosto de 2020

Há 20 anos, no Hotel Berna

"Teria feito, na passada semana, no dia 6 de Agosto, 85 anos. Mário Esteves Coluna. Dificilmente um nome foi tão intenso na história no Benfica e do futebol português. Guardo dele memórias carinhosas. Era de uma simplicidade desarmante.

Falava devagar. Às vezes mesmo muito devagar, quase para dentro, e era preciso fazer um esforço para escutar o seu discurso sempre bem organizado. Quando li a notícia de que Mário Coluna teria feito 85 anos, se continuasse vivo, fiquei com uma espécie de certeza de que continua, de facto, vivo. Há gente assim. Que morre de morrer, mas vive para sempre nas lembranças mais espontâneas que existem dentro de cada um de nós. Que seriam 85 anos para ele, o homem que dominava o campo como ninguém, que empolgava companheiros e apavorava adversários? Nada mais do que uma data para cumprir.
Subitamente, recordei-me de uma entrevista muito longa que lhe fiz, no Hotel Berna, em Lisboa, à beira do Apolo 70. Que diacho! Já lá vão precisamente 20 anos. O tempo passou, e nem dei por ela, entretido que ando a escrever todos os dias. Todas as horas de todos os dias.
Mário Coluna era simples, mas solene. Até na lentidão com que ia respondendo às minhas perguntas e desbobinando histórias da sua vida. Fiquei a saber muito que ainda não sabia sobre ele, apesar de já termos tido, antes disso, conversas de uma riqueza maravilhosa.
Chamaram-lhe Monstro Sagrado. Ao vê-lo, já encanecido, um pouco dobrado, via-se no campo, de cabeça erguida, peito feito para o que desse o viesse, comandante de homens valentes como ele. E as imagens assaltavam-me a memória aos borbotões. Uma delas, com Coluna de braços atrás das costas, cabeça ligeiramente curvada, falando respeitosamente para um árbitro, ficou guardada numa fotografia qualquer e sei lá em quantas páginas de jornal. Dizia-se que, a despeito da postura respeitadora, Mário Coluna dizia das boas aos árbitros. O antigo seleccionador nacional, Manuel da Luz Afonso, contou-me que Coluna tinha sido o único jogador que nunca tivera de multar. Mário, o Coluna, ria-se quando lhe falava nisso. 'Nunca levei uma multa, é bem verdade! Porque eu achava que devia ser um exemplo para os outros. Era, afinal, o responsável pela equipa dentro do campo. E falava com os árbitros nessa condição. Falava-lhes com respeito, mas dizia-lhes o que pensava dos lances e, se necessário, discordava deles'.

Apenas uma crónica...
Não é decididamente fácil falar de Coluna, assim um pouco à toa, um artigo deste género, numa crónica que não lhe faz a homenagem justa que ele tanto merece. Seria preciso um livro. Um livro épico, uma Odisseia de Homero, uns Lusíadas de Camões. Ah! Desculpe, meu querido senhor Coluna, terá de se contentar com a mera prosa que serei capaz de rabiscar.
A sua vida foi repleta de acontecimentos. Saiu do Benfica com amargura, sentia-se ainda capaz de fazer a diferença com o seu grito de comando, o seu berro que perpassava as tropas como o de D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique. Foi triste para o Lyon, jogando cada vez menos, até se fartar de França e regressar a Portugal. Jogou cinco finais da Taça dos Campeões europeus e uma final da Taça Latina. Ganhou e perdeu dinheiro; foi seguido pela PIDE, voltou para Moçambique, onde assegurou o seu futuro.
Volto àquele princípio de tarde, em Lisboa, no Hotel Berna. Parece que ainda ouço o som melancólico da sua voz. Contou-me histórias da sua infância, na ilha de Inhaca, onde o Índico se perde no horizonte. De como chegou a Lisboa em 1954, aos 19 anos, e de como chegou, viu e venceu, à moda de Júlio César depois de ter atravessado o Rubicão. 'Não gosto de dizer isso, pode parecer imodéstia, mas foi o que aconteceu, no fundo. O Benfica já não era campeão há três ou quatro anos, e logo na primeira época em que joguei fomos campeões, ganhámos a Taça, fui internacional A, B e militar. As minhas memórias são boas desde início, o futebol foi um mundo feliz para mim'. Soube merecê-lo. Como talvez também merecesse ser campeão do mundo naquele ano extraordinário de 1966, em Inglaterra, quando Eusébio espantou o mundo, e Mário Coluna recebeu a braçadeira de Germano e se tornou, orgulhosamente, o primeiro capitão negro de uma selecção europeia.
Recordo a melopeia. Os seus gestos tranquilos, a forma como era impossível não ficar preso às suas palavras, às suas frases. Escutá-lo era um privilégio que exigia contenção nas perguntas, uma dose bem medida de silêncio para que pudéssemos respeitar os seus silêncios intercortados.
Ele falava, eu ouvia: 'Fui felizmente, capaz de pensar na matemática do futuro. Investi o que ganhei em Moçambique. Não ganhei muito, podia ter ganho muito mais se o Benfica me tivesse deixado sair para a Roma, no mesmo ano em que o Eusébio teve um convite para o Inter, mas os tempos eram outros, ficaríamos a saber mais tarde que tinha sido o Salazar a proibir a nossa saída para o estrangeiro'. Depois revelava: 'Esse momento em que tive de aturar a PIDE tem que ver com uma viagem a Praga com a selecção. Apareceram-nos no hotel alguns estudantes angolanos, pediram-nos convites para o jogo, nós oferecemos os nossos, nada de mais. Mas, depois, chegados a Lisboa, recebi uma convocatória para ir à PIDE. Fui. O inspector que me atendeu era do Benfica e um admirador meu. Expliquei-lhe o que se passara, e ele disse-me: 'Você teve uma grande sorte por estar eu aqui. Com outro colega qualquer já estaria preso'. Como se alguém pudesse encarcerar um homem chamado Mário Esteves Coluna! Aquele cuja simples presença chegava para pôr em ordem todas as rodas dentadas do universo..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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