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quinta-feira, 7 de maio de 2020

Campeões antecipados? O peculiar caso da Liga NOS

"Numa altura em que ainda se ultimam decisões sobre o desfecho da Primeira Liga, já se levantam vozes contra hipotéticos cenários desenhados pela Liga de Clubes. Dar o campeonato por terminado antecipadamente, com ou sem campeões/descidas, trará sempre contestação. Mas haverá maneira de o fazer objectivamente caso isso se verifique? Talvez haja.

-"Campeão é quem estava em primeiro quando o campeonato foi interrompido!!"
-"O justo é que o campeão seja o que estava em primeiro lugar no fim da 1.ª volta, quando todas as equipas jogaram umas contra as outras."
- "Isto é tal e qual uma corrida de carros quando é interrompida!"
Já com certeza lemos/ouvimos estas teorias sobre o campeão da Liga Portuguesa 2019/2020. A Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP) ainda não anunciou como pretende concluir o campeonato, mas fala-se que serão jogos à porta fechada, em (pelo menos) 6 estádios: Luz, Alvalade, Dragão, Bessa, Municipal de Braga e Dom Afonso Henriques. Pretende-se que os 90 (!) jogos em falta sejam jogados num período de 7 semanas, entre o último fim de semana de Maio/primeiros dias de Junho e 20 de Julho (seguindo-se depois a Taça de Portugal).
Há quem diga que este plano de acção é optimista. Numa altura em que ainda não temos qualquer previsão de como irá evoluir a pandemia após o término do estado de emergência, planear actividades colectivas pondo em risco o bem-estar dos jogadores (e não só) vai contra as directrizes da Organização Mundial de Saúde (e do bom senso). E nesse sentido, é preciso assumir a possibilidade de se terem de tomar decisões sobre o desfecho dos campeonatos. Foi o que aconteceu relativamente à 2.ª Liga, numa decisão que (como irei explicar mais tarde) não tem sustentação analítica. Não é de estranhar portanto que esta terça-feira (passada), o Cova da Piedade tenha comunicado que irá reagir contenciosamente contra a "ilegalidade" que considera ser a despromoção ao Campeonato de Portugal, decidida pela direcção da LPFP. E se olharmos para os números, o clube é bem capaz de ter razão. Deixem-me explicar porquê.

Nota do Autor: Esta parte que se segue, apesar de pedagógica, pode ser chata. Mas estamos em quarentena, e não há futebol para nos distrairmos. Vou tentar usar uma linguagem corrente, por isso aceitem isto como uma tele-escola aplicada ao futebol.

Em estatística, o desvio padrão é um número usado numa distribuição normal para dizer como os valores de um grupo estão distribuídos a partir da média ou valor esperado. Por outras palavras, serve para saber quão grande é a diferença em relação à média. Se o desvio padrão for baixo, isso significa que a maioria dos números está próxima da média; se for alto, significa que os valores estão mais dispersos.
Vamos tentar aplicar isto ao futebol. Imaginem que fazem a média à pontuação de todos os clubes de um campeonato. E depois calculam o desvio padrão dessa média. Quanto menor o desvio padrão dessa média, mais equilibrado é o campeonato (clubes com pontuações próximas); quanto maior o desvio padrão, mais desequilibrado é.
Um desvio padrão inclui 68,27 por cento dos valores esperados, enquanto dois desvios padrão da média incluem 95,45%. Por norma, quando os cientistas analisam dados, só reportam diferenças maiores que duas vezes o desvio padrão. Num campeonato de futebol, isto seria o mesmo que dizer que os cientistas só considerariam relevantes os clubes cujas pontuações fossem maiores ou menores que o dobro/triplo do desvio padrão. Porque isto significaria que o número de pontos alcançados por estes clubes foge completamente à pontuação esperada para aquele campeonato. Ou seja, se dois desvio padrão incluem 95,45% dos valores esperados, a possibilidade de encontrar clubes com pontuações acima ou abaixo deste valor é de apenas 4,45%. Seriam portanto equipas que têm pontuações extremamente baixas ou altas para o esperado naquele campeonato.
Verifiquemos, a título de exemplo, se os principais campeonatos europeus poderiam ser decididos com base nesta análise.
Na Liga Francesa (onde o campeonato foi dado como encerrado, e o PSG consagrado como campeão francês de 2019/2020) a média de pontos do campeonato é de 38,35. Calculando o desvio padrão à média, multiplicando-o por 2 e adicionando/subtraindo à média, iremos tentar descobrir que clubes conseguiram pontuações significativamente diferentes do esperado para aquele campeonato. E só um clube de facto alcançou essa marca, o Paris Saint-Germain, que com menos um jogo conseguiu alcançar uma pontuação de 68 pontos.
Na Serie A verifica-se o mesmo, neste caso com a Juventus, que é o único clube cuja pontuação é superior ao cálculo da média adicionado ao dobro do desvio padrão.
Na Premier League a diferença é ainda mais substancial, já que o Liverpool alcançou uma pontuação tão significativa nesse campeonato, que quase equivale ao cálculo da média adicionado ao triplo (!) do desvio padrão. Ou seja, os pontos conquistados pela equipa de Klopp são significativamente diferentes das restantes 19 equipas da Premier League.
Deste modo, poder-se-ia dizer que nestes 3 campeonatos haveria (objectivamente) um vencedor antecipado justo, visto que estas 3 equipas conseguiram destacar-se das restantes e obter pontuações significativamente diferentes.
Contudo, tanto na Bundesliga como na Liga Espanhola, os desvios padrão são baixos, e se bem se lembram do início do texto, isto significa que nestes campeonatos as equipas têm pontuações mais equilibradas. Assim sendo, não há qualquer equipa em ambas as ligas cuja pontuação varie significativamente das restantes, ao ponto de se dizer que se destacaram (pela positiva ou pela negativa) ao longo da temporada.
Mas em Portugal o caso muda de figura. Feitos os cálculos, no nosso campeonato não há uma equipa que tenha uma pontuação significativamente diferente das outras: há duas! Tanto o FC Porto como o SL Benfica dominaram a Liga NOS, ao ponto das suas pontuações serem bastante superiores às esperadas para o nosso campeonato.
Com base nesta análise, não se pode afirmar com objectividade que um destes 2 clubes tenha sido claramente superior ao outro ao longo da temporada. Caso a situação de Saúde Pública assim o exija, e o campeonato tiver de ser decidido antecipadamente na "secretaria", poderá a Liga de Clubes, perante este cenário, definir critérios adicionais (goal average, desempenho no confronto directo, etc.) para "desempatar" estes 2 clubes, mas aí voltamos ao ponto inicial do post, ou seja, qualquer que seja o critério trará contestação adicional, visto tratar-se de uma situação excepcional que levará, incontornavelmente, à questão "mas então porque é que escolheram esse critério e não outro?!?".
É importante referir que tanto na Liga NOS como nas principais ligas europeias, não há clubes cuja pontuação se destaque significativamente pela negativa. O que nos leva novamente à 2.ª Liga e à contestação d'O Cova da Piedade.
No campeonato da 2.ª Liga portuguesa, Todos os clubes têm uma pontuação que está incluída nos 95,45% dos valores esperados para aquela liga. Todos, à excepção do Casa Pia, que com 11 pontos fica abaixo dos 13,52 pontos calculados pela subtracção do dobro do desvio padrão (19,26) à média da 2.ª Liga (32,78 pontos). Por outras palavras, só o Casa Pia teve uma pontuação significativamente diferente da esperada para a 2.ª Liga, e como tal seria injusto despromover qualquer outra equipa para além desta.
Ao decidir a descida d'O Cova da Piedade ao Campeonato de Portugal, a direcção da Liga de Clubes está efectivamente (e publicamente) a manifestar a sua completa incapacidade para, de forma puramente analítica e sem facciosismos, determinar matematicamente quem merece ou não permanecer neste escalão. Ou (com menos eufemismos) está novamente a demonstrar o seu amadorismo.
Em suma, determinar antecipadamente na "secretaria" quem sobe/desce de divisão, ou quem se consagra campeão requer, no mínimo, algum critério objectivo que possa ser usado sem contestação. O método que aqui expliquei é amplamente utilizado no mundo da Ciência, para reportar resultados significativos. Seria de esperar que numa decisão que pode valer vários milhões de euros, houvesse algum profissionalismo analítico no parecer final.
Mas falamos de Pedro Proença e sus muchachos."

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