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terça-feira, 24 de março de 2020

Presença, ausência e paixão

"«Só o futebol permite que você sinta aos 60 anos exactamente o que sentia aos 6. Todas as outras paixões infantis ou ficam sérias ou desaparecem»

1. Nesta fase de quarentena, passo grande parte do meu tempo lendo o que outros escreveram e escrevendo ou escrevinhando, mesmo que os outros não leiam. Afinal, e por ironia, eis quase uma síntese de três meios que me têm acompanhado ao longo da minha vida: a caneta, o livro e o relógio.
A caneta - agora substituída pelo teclado - continua a ter em mim o fascínio de me entregar directamente ao domicílio as letras, as palavras e os números que depois componho e descomponho. Costumo divertir-me com as canetas de tinta permanente, dando-lhes a tinta preta, azul escuro, azul vivo, sépia, roxo ou uma outra fascinante matiz, num acordo implícito entre o meu estado de espírito e o deleite do bico que a embede. Nunca deixando de me interrogar sobre o paradoxo de se chamarem canetas de tinta permanente, quando, afinal, deveria ser o tinteiro e não a caneta que deveria ter como aposto nominal a permanência da tinta.
O livro, na companhia que me faz, ou melhor, os livros na junção que constituo em cada dia na adequação ao meu almómetro. O livro (não o virtual, mas o físico), que se tacteia como quem lhe pode namoro, com cheiro de novo, meia-idade ou velho, com espaço para sublinhar e perguntar ou referenciar, com memória para revisitar, e com tanto espaço para deixar a minha impressão digital. O livro, que me revela a supremacia da inspiração dos autores sobre a mera materialidade e que, se tivesse aparecido depois do computador, teria sido uma notável invenção. E porquê? Porque é permanentemente renovável dentro de nós, não consome energia polidora, e tem um larguíssimo e facilmente atingível campo de visualização, que só de num depende.
O relógio, que me impõe o tempo cronológico e me orienta no caos. O relógio, que me encurta o futuro e me enriquece o passado. Porque sem ele, a minha memória não tinha as referências de que preciso para associar o que fez ou não fiz ao que ainda farei ou já não conseguirei fazer. Curiosamente, o relógio não nos mede o passado, e muito menos o futuro, porque apenas nos dá o presente que logo o deixa de ser ao átimo em que o foi. Por tudo isto, sempre gostei, com espírito coleccionista, dos relógios de areia ou ampulhetas, que me oferecem essa magia do presente que é o grão de pó que passa entre a âmbula superior - o futuro - e a âmbula inferior - o passado. A ampulheta e a clepsidra (esta de água ou líquido) trabalham quando queremos e repousam quando as deixamos. Ao contrário do relógio, somos nós que lhes concedemos o tempo para elas nos darem o tempo.

2. Certamente o leitor perguntará (se, entretanto, ainda não tiver desistido) se estas palavras de adequam a uma crónica num jornal que é - mas não apenas - de carácter desportivo. Cada qual terá a sua resposta, mas, pela minha parte, acho que sim, sobretudo num período em que estão em jogo valores fundamentais da nossa essencialidade e não apenas aspectos de circunstância ou contingentes. Provavelmente, este período difícil irá aproximar a vida no alto futebol à realidade mais terrena das pessoas comuns e demonstrar que o realismo consistente não se compadece com um fosso entre o mundo de milhões e um mundo de tostões. O próximo mercado de transferências será o primeiro e claro sinal disso.
O próprio jornal A Bola, nestes dias, tem sabido espelhar, com mestria e sensibilidade, esta ideia de que o desporto não é um mundo à parte e que, pelo contrário, se insere na sociedade em todas as vertentes que possamos considerar, sejam éticas, sociais, sanitárias, económicas, comportamentais, culturais. Basta atenuar a impressivos títulos de algumas das últimas edições: Contas à vida ou O jogo das nossas vidas.
Sim, das nossas vidas num jogo traiçoeiro e difícil. Sem regras e regulamentos prévios. Com um calendário opaco. Mas com novos campeões nos escalões da deontologia, da ética, da prevenção, da solidariedade, do respeito pelo outro.
Tudo o resto virá depois. De um modo diferente. Com a lição registada e aprendida, espero.

3. Tenho lido, aqui e acolá, previsões, profecias, desejos mal dissimulados, manobras de pressão e de antecipação e torno da bola de cristal dos meses que se seguem à suspensão das provas desportivas. Percebo o vazio nas emoções que a ausência inédita de jogos desportivos provoca. Não há arbitragens como matéria-prima de análises, divergências e discussões. Não há VAR que nos valha para ficarmos intrigados com centímetros em versão somítica.
E, nos meses que virão, das duas, uma: ou haverá condições para se terminarem os campeonatos em tempo útil sem provocar danos na normalidade da próxima época, ou não haverá de todo. Se houver, devemos todos felicitarmo-nos. Primeiro, porque, no que mais nos interessa, é sinal de que haverá condições sanitárias para tal. Depois, porque, desportivamente, estarão garantidas as condições para classificações finais regulamentares e completas. Se não houver, não vale a pena forçar soluções mais ou menos (i)lógicas, enviesadas ou com mais ou menos clubite implícita. Como nada está previsto e regulado, qualquer saída é não só fabricada pós-acontecimentos, como aplicada com efeitos retroactivos, e sabemos, de antemão, que nenhuma terá um denominador comum de satisfação dos naturais interesses e posições dos clubes. Por exemplo, designar campeão um clube que está na frente quando há 30 pontos por disputar (29,4% do máximo teórico de 102 e 50% dos até agora 60 pontos conquistados pelo 1.º classificado), a que acresce a mínima diferença entre os dois da frente (1 ponto) não tem consistência desportiva de nenhuma espécie. Tal como considerar a classificação ao fim da primeira volta, pese embora esta ser a única medida disponível em que todos jogaram contra todos. Ou, até na versão mais patética, qual seja a de considerar os dois jogos já disputados entre os rivais, como todos ou outros clubes fossem verbos de encher.
Isto quanto a ser campeão da primeira divisão. E então quanto aos que descem? E aos que sobem? E os que caem no Campeonato de Portugal (3.º escalão)? E aos que estão em melhores condições para passar para a 2.ª divisão? E os que desceriam aos distritais? E os que nestes se consideram próximos de ascender a uma competição nacional? E na segunda divisão dos distritais (aqui, lembro-me do Clube de Futebol Os Belenenses que está em condições de subir mais um degrau da longa escadaria que ainda tem pela frente)?
Mais complicado é o acesso à Europa, caso não haja mais competições domésticas em 2019/2020. A primeira palavra é a da própria UEFA, que pode impor uma regra única e universal em tempo de excepção. Ou encontrar uma forma de formatar o próximo ano das competições europeias, de modo a abarcar mais clubes, em termos de razoabilidade no seu acesso (por exemplo, em Portugal, considerar o SLB e o FCP na Champions). Se não houver regras de fora, este é o único ponto que terá de ser definido mesmo com uma época sem classificação final. Qualquer expediente administrativo desenhado à força é bem pior do que a decisão em jogos a efectuar para este fim. Por exemplo, os dois jogos entre Benfica e Porto (para atribuir o lugar de acesso imediato), até poderiam ser a final da Taça e a Supertaça que será obrigatoriamente entre os mesmos clubes. Uma boa oportunidade, também, para testar jogos com árbitros estrangeiros. Já quanto à Liga Europa, talvez uma poule entre os cinco putativos candidatos a um lugar nesta competição.
Em resumo, muita água vai correr por debaixo da ponte. Aguardemos, na esperança - essa sim, determinante - de conseguirmos vencer o vírus, afinal o inimigo invisível e traiçoeiro de todos os benfiquistas, portistas, sportinguistas, bracarenses, vimaranentes e de todos os clubes.

4. Como, por agora, tenho mais tempo mental para remexer em textos perdidos no tempo, quero partilhar com os leitores um saboroso excerto de um livro do romancista, humorista e cronista brasileiros Luís Veríssimo, agora com 83 anos (filho do grande escritor Érico Veríssimo), em que me revejo na minha inalienável condição de benfiquista: «Só o futebol permite que você sinta aos 60 anos exactamente o que sentia aos 6. Todas as outras paixões infantis ou ficam sérias ou desaparecem, mas não há uma maneira adulta de ser apaixonado por futebol. Adulto seria largar a paixão e deixar para trás essas criancices: a devoção a um clube e ás suas cores como se fosse a nossa outra nação, o desconsolo ou a fúria assassina quando se perde, a exultação guerreira com a vitória. Você pode racionalizar a paixão, fazer teses sobre a bola, observações sociológicas sobre a massa ou poesia sobre o passe, mais é sempre fingimento. É só camuflagem. Dentro do mais teórico e distante analista e do mais engravatado cartola aproveitador existe uma criança pulando na arquibancada».
Já septuagenário, confirmo gostosamente e sem pestanejar: «Carrega Benfica do meu coração!»."

Bagão Félix, in A Bola

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