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quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

O outro lado de ser “esperança” (olímpica)

"Acordar as cinco e trinta da manhã, iniciar o primeiro treino do dia, pelas seis horas, que durará, possivelmente, até às oito; apanhar transportes (muitas vezes os encarregados de educação que acompanham toda esta rotina, fazendo um sem número de malabarismos com a sua vida profissional, naturalmente penalizada, para poderem estar presentes no quotidiano dos seus filhos) e iniciar a escola pelas oito e trinta. Estar atento(a) nas aulas... é necessário, imprescindível mesmo se se pretende manter um desempenho elevado na escola e ter uma colaboração mais favorável dos professores (que, por vezes, confundem cansaço com desmotivação...) – o tempo é pouco para estudar, há que treinar na maior parte do tempo livre.
São agora 16h, há que correr para ir para a fisioterapia, a preparação física, o nutricionista ou o psicólogo – uma hora que tem que ser gerida ao segundo pois há que lanchar enquanto se faz os trabalhos de casa ou estuda para os três testes da semana, antes do segundo treino do dia.
17h30, tempo de arrancar para o treino, transportes... trânsito, uma enorme ansiedade e frustração porque não se quer chegar atrasado, uma discussão aqui e ali com a mãe ou o pai – afinal, o “terreno” seguro onde se pode “explodir” quando o cansaço de um dia que já leva 10h começa a surgir.
18h30... esperam-nos uma piscina, uma trave olímpica, um court de ténis, o tartan de uma pista ou, simplesmente o alcatrão de uma estrada durante as próximas duas a três horas de treino. Espera-os também um(a) treinador(a) que, muitas vezes, exerce a sua actividade com a mesma paixão, mas também a mesma complexidade em articular esta carreira com a actividade profissional (muitas vezes, dar aulas durante todo o dia numa escola).
21h30 ou 22h, chega-se a casa, janta-se num ápice, aproveita-se ao segundo aquela meia-hora providencial que vai permitir terminar aquele trabalho de casa. São 23h ou 23h30 – tem que se dormir, pelo menos oito horas para repor a energia e regenerar celularmente, tem que se dormir... mas há dor física, fadiga, cansaço ou hiper activação que nem sempre permite adormecer logo ou com qualidade. Mas, tem que se dormir, porque amanhã, e depois de amanhã, e daqui a dois e três dias – afinal, quase todos os dias – esta rotina repete-se.
Uma rotina que muitos jovens, seus treinadores e suas famílias escolhem e abraçam quando o sonho é representar Portugal ao mais alto nível.

Esperanças Olímpicas Paris 2024
Nos passados dias 18 e 19 de Janeiro, o Comité Olímpico de Portugal organizou, em parceria com a FADEUP, aquele que viria a ser o segundo encontro nacional de Esperanças Olímpicas.
O evento em si, entre muitos propósitos que não caberá aqui explorar, acaba por ser um momento de comemoração e partilha de conhecimento, onde os valores máximos do desporto, expressos nos valores olímpicos (a saber: Excelência, Amizade e Respeito), acabam por ser motivo de agregação entre todos os participantes, como se de uma única “tribo” se tratasse – uma “tribo” que vê espelhado o seu DNA na paixão pela capacitação através da prática desportiva (física, mas também psico-emocional e humana) e pela possibilidade de representar Portugal.
Uma “tribo” que, este ano, se viu representada por quase 100 atletas e 60 treinadores, os quais, na sua grande maioria, poder-se-á rever no relato do quotidiano anteriormente apresentado.

A Lei do Retorno
Da Biologia, à Física, passando pela Psicologia ou até por algumas filosofias de nova vaga, esta é certamente uma expressão que todos já ouvimos em alguma fase da nossa existência.
A sua introdução, nesta reflexão não tem, contudo, o significado comunmente utilizado. 
Naturalmente que é do conhecimento comum que as competências adquiridas experencialmente (como é o caso do desporto ou das artes performativas, por exemplo) são passíveis de serem transferidas entre os diferentes contextos de realização, pelo que, um jovem que se aplique e se dedique inteiramente à sua pratica desportiva, se devidamente enquadrado pelos adultos (que se desejam responsáveis) à sua volta, angariará necessariamente excelentes competências de Vida, que potenciarão a sua capacidade em concretizar a vida que deseja, a longo prazo – e, aqui podemos, em boa verdade, observar algum “espelho” desta “lei do retorno”, uma vez que o seu investimento presente poderá trazer retorno a longo prazo.
Creio, contudo, que seria um passo interessante passar deste tipo de “wishful thinking”, que acaba por nos desresponsabilizar do processo, para um posicionamento conscientemente mais responsável, no sentido de serem garantidas condições diferentes a quem escolhe dedicar-se a representar Portugal, contribuindo decisivamente para a sua reputação internacional (que beneficiará, em muito, o próprio país em diferentes segmentos económicos, mas que não cabe aqui explorar).

Os “Bons” Serão Recompensados No Fim
Não é bem assim. A sociedade em geral reconhece “valor” a quem traz uma “medalha” para casa; as “selfies”, tiram-se com os medalhados e, as marcas, também gostam de “pódios” e muito pouco de, em anonimato, ajudar a gerar as condições necessárias para que os atletas (e seus treinadores) possam reunir as condições necessárias para verem o seu esforço traduzir-se na melhoria das suas marcas.
Se perguntarmos a quem quer que seja qual o TOP 10 de uma dada modalidade em Portugal, dificilmente serão identificados mais do que 5 porque, de facto, toda a indústria se mobiliza à volta dos resultados, retirando qualquer possibilidade de visibilidade a quem “não aparece na foto”.
A dedicação, entrega e capacidade de sacrifício que estes jovens evidenciam, enquadradas num contexto de top performance, debatendo-se muitas vezes com a ausência das melhores condições, a incompreensão de professores ou até fenómenos de bullying entre os pares (maioritariamente em contexto académico), deveriam, por si só, ser merecedoras da atenção dos media e da indústria que alavanca o desporto em si.
Até porque, os 100 jovens que connosco estiveram são apenas uma expressão do potencial que os nossos jovens têm, potencial esse multiplicado certamente se devidamente enquadrado numa cultura verdadeiramente ancorada na promoção de competência e não de resultados a curto prazo. 
Curiosamente, há 20 anos atrás tive a oportunidade de participar num projecto, dirigido ao desporto jovem, só possível porque uma empresa nórdica (com tradição na modalidade e já com um histórico de apoio à mesma no seu país de origem) se associou ao mesmo.
Nos 20 anos que se seguiram, não voltei a ver qualquer tipo de iniciativa desta dimensão, muito menos por empresas portuguesas.
Fica o repto: para quando uma cultura que aposte em parcerias de crescimento e não numa “cultura de medalhite e selfies”? Uma cultura que reforce o esforço e empenho e não o resultado, muitas vezes, esporádico e pontual?
Que mensagem queremos, de facto, passar às gerações que nos sucedem?"

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