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terça-feira, 6 de agosto de 2019

Um treino de captações com João Félix, Daniel Bragança e Fábio Silva

"Um jogador talentoso consegue afirmar-se em qualquer contexto, por obra e graça do Espírito Santo? Nem pensar, (...) utilizando como exemplos João Félix, Daniel Bragança, Fábio Silva e outros tantos: "O futebol é dos únicos ofícios onde se admite, de forma consensual, que se pode ganhar experiência de jogo sem jogar"

A experiência pessoal é a base da maior parte das crenças que dão forma às nossas opiniões. E ainda que não se saiba justificar o porquê de se achar “a” melhor do que “b”, ou “x” mais forte do que “y”, essa percepção está fortemente influenciada pelas vivências que cada um teve. No subconsciente de cada um descansam memórias carregadas de emoções que nos fazem tender mais para um lado do que para os outros. O problema disso é: a nossa experiência, aquilo que o nosso corpo vivenciou, nem sempre nos permite visualizar (captar) da forma mais assertiva a informação que o ambiente nos dá. 
Para quem não está familiarizado com o termo, um treino de captações é um teste que os clubes de futebol realizam para dar uma janela de entrada a jogadores que queiram fazer parte das suas equipas. Esses treinos, que podem diferir na forma e na organização, normalmente funcionam da seguinte maneira: são marcadas datas onde os jogadores podem aparecer, e com o número de jogadores que aparecem são realizados jogos onde os jogadores devem mostrar as suas qualidades, e os argumentos que lhes podem valer a desejada entrada nos clubes.
Tendo em conta o tempo disponibilizado, e a quantidade de jogadores que se mostram para prestar provas, o teste acaba por não cumprir o objectivo de aferir com um alto grau de certeza o real valor de cada um dos que se propuseram a prestar provas. O futebol já é um jogo com um grau de aleatoriedade enorme, e este tipo de teste consegue colocar o índice de incerteza num patamar superior por força dos milhões de milhares de imponderáveis que a situação permite.
Enquanto jogadores, ou seguidores do futebol, quase todos passamos por esse tipo de testes, ou ouvimos falar de situações de pessoas que os enfrentaram. Por tal, por ser uma situação regular, por estar enraizada na cultura do futebol, acha-se que é uma proposta justa para se aferir o valor que cada um tem. Por força do hábito, e da quantidade enorme de coisas que a sociedade nos entrega sem que coloquemos problemas sobre o método, por termos também passado por elas (numas vezes com sucesso, e noutras sem tanto sucesso), sentimos que é possível aos mais fortes sobreviver neste tipo de ambiente.
Pensamos que estão criadas as condições, que se está a proporcionar o desafio certo para que os melhores jogadores de futebol se evidenciem. Afinal, também nós fomos capazes de superar tais testes, ou conhecemos alguém que os tenha superado; quando não o fizemos, foi por não termos sido capazes de superar a concorrência e agradar mais aos avaliadores do que outros que foram escolhidos no nosso lugar - foi por culpa própria. É como aquela velha frase que todos ouvimos das pessoas mais velhas: “Se eu passei por isso e não me matou também não matará os miúdos”.
As pessoas acham que para vingar, para se ter sucesso, para se mostrar qualidade, o único factor relevante é o talento e o trabalho árduo. Independentemente das condições que se dão aos talentosos para aparecer, por força da sua capacidade, eles vão acabar por se superiorizar aos outros e conquistar o seu lugar. Não importa que quem faz a seleção se esteja a borrifar para aquele tipo de talento específico, nem tão pouco que num treino de captações apenas se jogue durante menos de meia-hora com outros jogadores com os quais não existe qualquer relação. Ninguém quer saber se o jogador esteve a prestar provas na posição que mais o favorece, ou se o jogo que se jogava lhe deu a possibilidade de mostrar aquilo que o diferencia dos outros. Interessa pouco se o jogador estava doente, nervoso, pouco inspirado, ou se simplesmente estava num momento menos bom - que se diga, coisas pelo qual todos passam.
Na revista do Expresso de final de época, o Nuno Amado (aquele que é para mim, há anos, quem melhor escreve e analisa futebol em português) escreveu sobre João Félix:
“Na primeira metade da época, ainda com Rui Vitória ao comando do leme encarnado, João Félix foi utilizado de modo intermitente, umas vezes descaído para a ala e com tarefas defensivas muito exigentes, outras vezes em posições centrais do ataque, sem no entanto grandes liberdades e com pouca amplitude de movimentos. Não obstante algumas boas prestações e alguns momentos de génio, não era de modo algum consensual que se pudesse afirmar desde já no plantel principal. Considerava-se que era ainda imaturo, que não estava ainda ao nível que se exige a um titular do Benfica, e que era muito inconstante em termos exibicionais. Para a esmagadora maioria dos adeptos, era um jogador com enorme margem de progressão, do qual se poderia esperar muito no futuro, mas que ainda não estava preparado para assumir a titularidade da equipa. E, de repente, em poucas semanas, tudo mudou. Com a chegada de Bruno Lage, João Félix não só passou a ser titular indiscutível como passou a jogar sistematicamente no corredor central. O maior protagonismo que passou a ter foi uma consequência dessa aposta e desse lugar específico no terreno de jogo. No 4-4-2 de Lage, é ao avançado mais móvel que compete boa parte dos movimentos sem bola entre linhas, e é acima de tudo através desses movimentos que a equipa desenvolve as suas melhores jogadas de ataque. A manobra ofensiva do Benfica passou, por isso, a depender muito de João Félix. Como tem qualidade para desempenhar esse papel, o jovem jogador encarnado aproveitou a oportunidade, e foi ganhando destaque. Como, além disso, começou a somar golos atrás de golos, depressa adquiriu o estatuto de imprescindível. De repente, o talento de João Félix era incontestável. Em Dezembro ninguém imaginava que pudesse chegar a Maio cobiçado pelas melhores equipas do mundo; em Maio, ninguém percebe bem como é que em Dezembro ainda não se imaginava tal coisa.”
Como o Nuno descreve, no caso de João Félix, a maior parte das pessoas achava que o jovem avançado era inconstante fruto da idade, da juventude. E que há uma equação mágica que resolve isso: entre aquelas entradas fugazes no onze inicial, mais as entradas vindo do banco de suplentes, misturadas com alguns jogos a torcer pela equipa no banco de suplentes ou no lugar reservado para os jogadores não convocados, e o trabalho árduo nos treinos - o resultado é infalível! As pessoas esperam que com o tempo, e com a forma inconstante como vão sendo atirados para dentro de campo, os jogadores se tornem consistentes. No fundo, é tudo uma questão de experiência. Mas que experiência?!
O futebol é dos únicos ofícios onde se admite, de forma consensual, que se pode ganhar experiência de jogo sem jogar; é a mesma coisa que pegar num aspirante a pianista, colocá-lo durante um ano a assistir a actuações de outros pianistas e esperar que dessa experiência ele passe a dominar o piano; ou até achar-se que um pianista excepcional se deve evidenciar sempre, mesmo que tocando em pianos sem todas as teclas, e que se o aspirante não for capaz de evidenciar o seu talento nessas condições é por não estar preparado para o nível a que se está a propor; por mais absurdo que possa parecer, há ainda ainda quem ache que, se o aspirante não conseguir recolher uma grande ovação numa audiência de surdos é porque o seu talento não é assim tão relevante, tão diferenciador.
Há, em Portugal, um preconceito muito grande para com jogadores que necessitam, mais do que outros, de condições para evidenciar o seu talento. E, por mais que necessitem mais do que outros dessas condições, são jogadores que com as condições criadas teriam capacidade para suplantar por muito os que concorrem para as mesmas posições nos respectivos clubes. Há demasiados exemplos nos últimos anos que o demonstram de forma evidente, mas a maior parte das pessoas continua a assobiar para o lado como se não fosse nada com elas.
Marcos Bahia, dos sub-23 do Estoril para titular indiscutível na equipa de Paulo Fonseca em Donetsk. Não teve espaço para se afirmar numa equipa que jogava na segunda liga, vai agora jogar na melhor prova de clubes da Europa. “Se fosse assim tão bom, assim tão talentoso, deveria ter vingado facilmente no contexto onde estava...” Hoje, é para todos evidente o talento do jovem jogador, simplesmente por, tal como João Félix, lhe terem oferecido as condições necessárias para que pudesse apresentar rendimento.
A questão permanece: como é que se torna experiente sem experimentar?!
Qual é, afinal, a grande diferença entre de Ligt, de Jong, Kai Havertz ou João Félix e Riqui Puig, Tomás Esteves ou Fábio Silva? São todos talentosos (ainda que com qualidades diferentes), e todos feitos de carne e osso. No entanto, uns brilham ao mais alto nível aos 19 e 20 anos enquanto outros não têm a possibilidade de colocar em campo o que de melhor podem oferecer.
Para lá da coragem dos treinadores para os colocarem a jogar, tiveram a sorte de encontrar um líder que entendeu que a equipa sairia beneficiada se eles conseguissem evidenciar o seu talento. Criaram, por isso, estruturas, dinâmicas, movimentos, que fossem ao encontro das melhores características de cada um deles.
Sim! Já sei que vão todos dizer que Jonas estava lesionado e que por isso a entrada de João Félix para o onze foi fácil; mas não! Bruno Lage alterou o sistema de jogo para que o avançado português pudesse dar o melhor que pode oferecer à equipa. Quantos mais treinadores em Portugal, no resto do mundo, o fariam? Para mim, o grande mérito de Bruno Lage na época anterior foi esse: entendeu, ao contrário do seu antecessor, que João Félix era o seu melhor jogador, não olhou para a idade, não olhou para os peso ou para a altura, e tirou proveito dele. E ainda dizem que é um jogador de grande potencial! Potencial?! João Félix já é! De resto, pode obviamente evoluir como todos os outros jogadores do mundo. Acabem com os chavões porque há jogadores aos 18 anos que jogam mais, que jogam melhor, que jogadores de 30.
É preciso, de uma vez por todas, que se entenda que há uma diferença fundamental entre lançar jogadores e apostar neles. Em Portugal, todos os anos se lançam muitos jogadores formados nos clubes. Aposta-se em poucos, porém. Se o Fábio e o Tomás, aos 20, não forem unânimes, não será por falta de talento ou trabalho. Porque já mostraram com o seu trabalho que têm mais qualidade que os companheiros de equipa que jogam na mesma posição. Será por - assim como com Daniel Bragança - não lhes ter sido dada a possibilidade, a melhor possibilidade, de adquirirem a experiência necessária para vingarem ao mais alto nível."

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