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terça-feira, 28 de agosto de 2018

Pensar o Desporto é pensar a Vida

"Creio que é de Jaspers o que vou escrever: “fazer filosofia é estar a caminho”. Como Wittgenstein o refere: a filosofia não é uma doutrina, é uma actividade. Quando se procura o sentido, o movimento intencional é inevitável. Não basta o movimento, importa saber o que se pretende fazer do movimento. Portanto, para mim, filosofia é, de facto, estar a caminho, mas com significação e sentido. A história manifesta-se pela transição, pelo movimento. Incumbe, no entanto, ao filósofo e ao teólogo esclarecer o sentido da transição, do movimento. E o sentido não se alcança racionalmente tão-só, pois que, ao pensá-lo e ao vivê-lo, a análise filosófica transforma-se em vivência filosófica: não há, nele, “razão pura”, mas os possíveis que a complexidade humana permite, mormente pelo “agir comunicativo”, específico da condição humana – “agir comunicativo” que se faz sistema, ou seja, uma dialéctica de relações. Uma abordagem sistémica da motricidade humana diz-nos que é uma complexidade que a realiza, em procura imparável de um sentido, a transcendência. Leonardo Boff, herdeiro emblemático da “teologia da libertação” define assim o ser humano: “É um ser de abertura. É um ser concreto, situado, mas aberto. É um nó de relações, voltado em todas as direcções (…). É só se comunicando, realizando essa transcendência concreta na comunicação, que o ser humano constrói a si mesmo. É só saindo de si que fica em casa. É só dando de si que recebe. Ele é um ser em potencialidade permanente” (Tempo de Transcendência, Sextante, Rio de Janeiro, 2000, p. 36). Se bem entendi Leonardo Boff, o ser humano vive em permanente anseio de transcendência, já que tem a consciência, também permanente, dos seus limites. No mundo do saber, por exemplo, quanto mais se sabe, mais se compreende que ainda há muitíssimo por saber. Newton, um génio, dizia: “O que sei é uma gota de água, no oceano da minha ignorância”.
O iluminista Voltaire deixou escrito: “Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo”. De facto, sem Deus, a vida é um absurdo, a transcendência não tem sentido. Com Deus, a vida é um mistério? Assim é. Mas um mistério que nos é anunciado pela mais poderosa energia espiritual que o mundo já conheceu: Jesus Cristo! A sua mensagem parece alheia ao tempo e continua juvenil, sonora, bem timbrada e sem nada de alienante. Como pode alienar um Homem, que defendeu, até à morte na cruz, que… todos somos iguais, que libertou da morte a mulher adúltera, que abraçava e beijava as criancinhas enquanto dizia aos apóstolos e ao olhar húmido e esquivo das mulheres que os acompanhavam: “É preciso ser, como as crianças, para entrar no Reino dos Céus”? Volto a Leonardo Boff: “o ser humano é um projecto infinito. Um projecto que não encontra neste mundo um quadro para a sua realização plena. Por isso, é um errante, em busca de novos mundos e novas paisagens (…). O ser humano é um projecto ilimitado, transcendente, não dá para ser enquadrado (…). Não há nada que possa enquadrá-lo, nenhuma fórmula científica, nenhum modo de produção, nenhum sistema de convivialidade. Nem mesmo o nosso moderno sistema globalizado, dentro do pensamento único, que afirma não haver alternativa para ele, reforçado pelo fundamentalismo da economia de hoje, que garante só existir de válido o modo de produção capitalista global, com sua ideologia política, o neoliberalismo, que proclama não haver outro caminho a seguir” (pp. 37/38). Centrado na imediatez empírica, fascinado pela frivolidade, pelo supérfluo, seduzido por um hedonismo que os media publicitam sem cessar, de costas voltado para a transcendência de qualquer metafísica – a Europa racionalista e céptica e ligeiramente cristã já foi comunista e socialista e é hoje “hipermoderna” (a segunda modernidade).
Hipermoderna? Segundo Gilles Lipovetsky, hipermoderna, porque “o Estado recua, a religião e a família privatizam-se, a sociedade de mercado impõe-se: apenas está em jogo o culto da concorrência económica e democrática, a ambição tecnicista, os direitos do indivíduo (…). Assim, somos testemunhas de um formidável aumento das actividades financeiras e bolsistas, de uma aceleração da velocidade das operações económicas que funcionam, agora, em tempo real, de uma explosão fenomenal de volumes de capitais, em circulação no planeta” (Gilles Lipovetsky e Sébastien Charles, Os Tempos Hipermodernos, Edições 70, Lisboa, 2018, p. 57). O Doutor Sobrinho Simões, um dos expoentes da medicina e da investigação médica, em Portugal, em entrevista à revista do Expresso, de 25 de Agosto de 2018: declarou: “A minha grande descoberta foi que as explicações biológicas fazem sentido para muita coisa, mas não para explicar quem sou”. Empurrado por ventos vários da fortuna, cheguei a esta mesma conclusão do insigne cientista português, porque nunca desvinculei a biologia de tudo o que eu sou, para além do biológico. Uma lei geral de Teilhard de Chardin assim se exprime: “Nenhuma realidade material pode evoluir, sem atingir a fase de uma mudança de estado”. A compreensão una do real, como totalidade biológica em devir e que, pelo devir, se faz vida e cultura, diz-nos quem somos ontologicamente e mostra-nos a vinculação da transcendência a tudo que é qualificante do desenvolvimento humano. A regência do Maestro Leonard Bernstein emocionava-me, quando o via na televisão, como me emocionei, rapaz ainda, durante a meia dúzia de vezes que assisti, na Sé de Lisboa, ao trabalho do Maestro Pedro de Freitas Branco à frente da Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional. Tudo era jogado na arte destes dois Maestros: o biológico e o cultural, a matéria e o espírito, o saber e a sabedoria; tudo era jogado numa evolução que era transcendência, sobre o mais.
No livro de Ernst Bloch, Le Principe Espérance (Gallimard, Paris, 1976, p. 247) pode ler-se: “na origem, descobre-se o não; na história, o ainda-não; no fim, o nada ou o Todo”. Quando observamos atentamente a realidade, inunda-nos uma sensação capitosa de sol e de risco, sentimos o próprio pulsar da vida. Há, de facto, na vida, uma penetrante monotonia do “ainda-não”, que afinal é um convite à transcendência e, pela transcendência, à esperança. No entanto, só se espera, quando se tem fé em nós, no nosso trabalho, no nosso convívio com aqueles que nos acompanham. É que a transcendência não rola num mundo quieto, veludoso, de puro encantamento. Pelo contrário: são cruentas as disputas, intempestiva a inveja, agressiva a incompreensão. Nelson Évora, campeão do mundo, campeão olímpico, campeão europeu, de triplo-salto, desabafou a uma revista, durante uma espécie de interregno na rotina das suas obrigações de atleta de altíssima competição: “por detrás de uma medalha, há sempre muitos dramas, muitos sacrifícios” (Caras, 2018/8/25). E há esperança e fé e transcendência… em equipa, em grupo, em comunhão interpessoal! O Desporto vive dos olhares juvenis de desafio e triunfo dos (das) atletas mas, sobre o mais, do anseio inapagável de transcendência, visando a vitória, o desempenho espectacular, o recorde. Sem o anseio de transcendência, sem agonismo, o Desporto nada mais é do que jogo, higiene, lazer. A famosa divisa olímpica “Citius, Altius, Fortius” é um eterno apelo à transcendência – que atravessa qualquer visão evolutiva da realidade. Sem a transcendência, a matéria não seria vida e a vida não seria espírito e liberdade. Por seu turno, o anseio de transcendência supõe fé. Relembro Santo Agostinho: “Crê e compreenderás”, ou seja, a fé precede, a razão procede. De referir ainda que o campeão, ou seja, o especialista em transcender e transcender-se não é tão-só um criador de cenas singularmente impressivas de fome sublime de glória, mas também a sua pátria precisa dos seus excepcionais desempenhos. A sua transcendência é a transcendência de um país inteiro.
Pensar o Desporto é Pensar a Vida! Um Desporto com Fé e Transcendência e portanto que sabe tematizar e viver as grandes questões de uma história colectiva! Por isso, biologizar o Desporto (e ficar por aí) é desumaniza-lo. Camus inicia o Mito de Sísifo, com a tese seguinte: “Só há um problema filosófico, verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia (…). Nunca vi morrer ninguém pelo argumento ontológico (…). Em contrapartida, vejo que muitas pessoas morrem, por considerarem que a vida não merece ser vivida”. Mas eu acrescento a pergunta: é a vida que não tem sentido, ou a morte? É que a morte esvazia de sentido qualquer sentido da vida. Assim, a pessoa humana só consegue encontrar sentido em tudo o que faz, se vencer a morte. Os valores, os mais ardentes e generosos, as nossas mais puras e legítimas ambições, tudo a morte vence, se a morte for isto só: uma redução do ser ao nada. Mas, se tudo é evolução e a evolução supõe a passagem da quantidade à qualidade, ou da qualidade a melhor qualidade: “onde está, ó morte, a tua vitória?”. A hominização, a humanização é a cultura que as completa. Porque é cultura também, é que a biologia é uma das bases da complexidade humana. Por que não pensar a morte como uma passagem de uma vida que prepara uma outra incomparavelmente melhor? Para mim, é a imortalidade que dá sentido ao valor. De uma vitória desportiva, de um atleta de excelência é possível extrair inúmeras lições… que não são só de carácter biológico! Salvo melhor opinião, a expressão “Actividade Física” não pode fundamentar o Desporto, por que o Desporto, sendo biologia, não é biologia tão-só. O Desporto existe de facto, onde a morte e o nada forem superados, vencidos, ou em processo de transcendência."

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