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terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Sem fanatismos, sem medo, com honestidade intelectual: Duarte Gomes diz o que é preciso dizer sobre o videoárbitro

"É tão inegável quanto elogiável que, por esta altura, já foram evitados cerca de 30 erros graves devido ao bom uso do VAR. Mas também é inegável que muitos outros (não sei se mais ou menos, em quantidade) ocorreram em circunstâncias em que seria expectável que a tecnologia interviesse  

Desafiaram-me para fazer um balanço às arbitragens e, de um modo geral, às actuações dos árbitros até à data. E aceitar esse repto significa incluir nessa análise aquela que foi a grande novidade desta época desportiva: o projecto videoárbitro.
A palavra “projecto” faz ali todo o sentido. Para quem não se recorda, esta é uma ferramenta ainda em fase de testes. Fase de testes que durará cerca de dois anos (de 2016 a 2018), tempo considerado suficiente para que se recolha e analise a informação recebida das competições que aceitaram experimentar esta tecnologia.
Mas uma opinião que se preze não pode ser dissociada de duas ou três verdades que é justo aqui recuperar:
Esta ideia foi aprovada em sede de assembleia geral da Liga Portugal pelos clubes de futebol profissional. Não foi, portanto, uma imposição. Foi uma escolha. Uma escolha deliberada e consciente do futebol português. De todo o futebol português;
Essa opção pressuponha conhecer o âmbito e os limites do que estava em causa: testar uma tecnologia capaz de auxiliar os árbitros em situações relevantes do jogo, mas sujeita a um rigor protocolar e de intervenção tremendos. Porquê? Porque o receio de fragilizar o jogo – com interrupções excessivas e demoradas – foi tanto que se optou, num primeiro momento, por apertar a malha em vez de permitir consultas excessivas, estéreis e prolongadas.
Hoje não faltam vozes a querer o fim daquilo que, durante anos a fio, tanto exigiram ao futebol. Não é falta de coerência. Nós, todos nós, somos assim.
Também é verdade que nunca ninguém vendeu o “videoárbitro” como a cura para todos os males. Pelo contrário. Não faltaram avisos, repetidos até à exaustão, que este seria o “ano zero” de um meio auxiliar e que não terminaria com todos os erros de arbitragem.
Na altura, à distância, todos pareciam entender essas limitações. Clubes, adeptos, árbitros, jogadores e treinadores, imprensa… assinaram uma espécie de pacto moral de apoio, onde imperava, além da enorme expectativa, a tolerância e a razoabilidade.
A verdade é que a proximidade com o erro e a sensação de prejuízo directo logo fez ruir a utilidade desta ferramenta e hoje não faltam vozes a querer o fim daquilo que, durante anos a fio, tanto exigiram ao futebol.
Não é falta de coerência. Nós, todos nós, somos assim: vítimas da nossa latinidade e tantas vezes incapazes de separar o acessório do essencial, o casuístico do geral. Ver à distância? Só a casa dos outros. A nossa não.
Dito isto, importa agora olhar para factos e analisar o que está bem e o que não está. Com a tal distância que se exige a quem entende que a crítica, elevada e correta, é uma das melhores formas de evolução e não uma destruição oca, invejosa e maldosa do que está a ser (bem) construído.
Ao contrário do que possa ser dito pelos números que vimos recentemente divulgados (taxas de acerto a rondar os 99%), é minha opinião que as coisas não estão a correr tão bem quanto seria desejável e expectável.
O problema não é apenas da tecnologia em si, é também do homem, do árbitro que a manuseia.
É tão inegável quanto elogiável que, por esta altura, já foram evitados cerca de 30 erros graves devido ao bom uso do VAR. Mas também é inegável que muitos outros (não sei se mais ou menos, em quantidade) ocorreram em circunstâncias em que seria expectável que a tecnologia interviesse.

Tem havido 'erros limite', verdade, muitos, até
Todos já percebemos que os árbitros que desempenham a função de VAR devem obedecer à máxima da “mínima intervenção, máxima eficácia”. E todos sabemos também quais são as quatro situações de jogo em que podem atuar e em que circunstâncias o devem fazer.
Mas é precisamente a essas que nos referimos.
Não se consegue defender perante ninguém ou explicar a quem quer que seja como é que um árbitro que dispõe de tantas (ou mais, muito mais) imagens do que o adepto consiga cometer erros de acção ou omissão quando em causa estão lances protocolados que, aos olhos de toda a gente (de toda a gente mesmo), são claros e evidentes. Muito claros e muito evidentes.
Não se consegue explicar mesmo.
E isso é angustiante para quem olha para as coisas com distância, sem emocionalidade e sente -se impotente, porque incapaz de justificar algo que não tem justificação.
Tem havido “erros limite”. Verdade. Muitos, até. Os tais de intensidade, do contacto ou meio contacto, da queda facilitada ou provocada, do empurrão ou meio empurrão, que por muito que se opine – que se ache que foi ou não faltoso – percebe-se, com exercício normal de honestidade intelectual, que não exista videointervenção. Nesses convém relevar sempre a loucura momentânea dos adeptos ou a cegueira apaixonada dos intervenientes.
Mas falamos aqui de todos os outros. Daqueles que são flagrantes e logo à primeira repetição. Daqueles que se vê do sofá, com o plasma a quatro metros, uma cerveja numa mão e o controlo remoto na outra. Sem se ser especialista nem doente da bola:
“A bola bateu só no peito, nunca na mão! A camisola foi toda esticada e o agarrão foi ostensivo, não foi uma questão de intensidade ou de interpretação! A pisadela foi declarada e violenta, não foi involuntária! O jogador acertou em cheio na cara e derrubou, não foi um mero choque de duas alminhas no ar! O fora de jogo foi mais do que duvidoso, não justificava intervenção!”
São a estas que nos referimos. As tais que, por serem tão fáceis de ver, são impossíveis de perceber. 
Será que fará sentido um jovem árbitro ser VAR do um árbitro bem mais experiente e categorizado? E será que o jovem árbitro não será mais influenciado pela opinião de um VAR de estatuto superior? 
Fui árbitro anos a fio e, em matéria de erros, tirei mestrado e doutoramento. Sei que, lá dentro, tudo é rápido, rapidíssimo. Quase nunca se vê os lances tal e qual como acontecem. Ou é o jogador que passa à frente no pior momento ou escorre o suor pela cara que queima os olhos ou o holofote cega momentaneamente ou há alguém que chama e distrai… tudo perturba, tudo pressiona, tudo acontece em milésimos de segundo.
Isso percebo. Senti-o na pele.
Mas agora tudo isso tem uma ajuda suplementar, única e privilegiada: um árbitro que não tem essa pressão, que não está sujeito a esses contratempos, que está sentado diante de várias ecrãs e que vê tudo. Detecta tudo. E pode dar toda essa informação a quem está no relvado, a lidar com as diabruras do imediatismo.
Quando as falhas evidentes acontecem, levantam-se logo dezenas de perguntas: será que viram a imagem que vimos todos? Será que falhou a comunicação (já aconteceu)? Será que teve receio de intervir porque o subconsciente lhe disse para estar calado? Será que as imagens de que dispõe têm a mesma qualidade que as imagens que toda a gente vê em casa? Será que, quando amplia uma repetição para ver com maior nitidez, a definição não permite ver mais do que uns borrões? Será que o VAR recomendou a mudança e o árbitro não aceitou? Será que o árbitro esperou pela voz e o VAR não falou? Será que a mente não pregará partidas na hora de tomar uma grande decisão? Será que fará sentido um jovem árbitro ser VAR do um árbitro bem mais experiente e categorizado? E será que o jovem árbitro não será mais influenciado pela opinião de um VAR de estatuto superior?
Fica sempre a dúvida.
Daquilo que não fica é da certeza que esta é uma excelente ferramenta e que veio para ficar (como se verá em Março, após a reunião do IFAB).

Arbitrar em campo sempre foi fiferente de analisar imagens em poucos segundos
Também não fica nenhuma dúvida que os árbitros são pessoas íntegras, honestas e bem intencionadas e que desempenham a sua missão – as suas duas missões – com o maior profissionalismo possível. 
Mas podia ser melhor, podia estar a ser quase perfeito.
E o melhor mesmo é nunca nos refugiarmos em estatísticas ou no argumento de que tudo isto é muito novo, porque é precisamente esse erro que nos impedirá de evoluir e de melhorar.
Insista-se na formação e informação. Na deles (dos árbitros) e na nossa (de todos nós), que estamos sedentos de saber e perceber mais, para suspeitar menos.
Melhore-se continuamente e dentro do limite do possível a tecnologia: a qualidade do sinal, das imagens, dos zooms, da comunicação, das linhas de fora de jogo, etc.
E comece a filtrar-se a qualidade. Como em tudo na vida, há quem tenha mais e menos sensibilidade para cada função: arbitrar em campo sempre foi bem diferente de analisar imagens em poucos segundos e decidir em função delas. Que o processo seja feito por quem o faz melhor.
O caminho é este, as pedrinhas… umas fazem parte, outras nem por isso."

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