Últimas indefectivações

sexta-feira, 18 de março de 2016

Da pertença, da identificação e da prosa

"Beira Baixa, anos 70 e ser do Benfica.
Era-se do Benfica num sentido total, numa infância em que o 'ser do Glorioso' implicava uma radicalização na pertença que ia muito além da razoabilidade dos argumentos. Não se discute o Benfica, não se pensava o Benfica, não se questionava o Benfica. Era-se, sendo do Benfica. Era-se assim, naturalmente, como se a ordem cósmica de ser do Benfica tudo recolocasse no seu sítio. Quando os mais velhos faziam uma ou outra crítica, o exclusivo da observação ficava vedado ao assentimento dos mais jovens. E a crítica era sempre dirigida a um ou outro jogador, treinador ou dirigente e nunca, mas nunca, ao Benfica.
Ir ao Estádio da Luz era raro, caro, difícil, longínquo e quase utópico. Ir ao Estádio da Luz era como se um grego do século de Péricles ascendesse ao Olimpo para tocar os deuses. Definitivamente, era um privilégio e não um ritual. Os jogos chamavam-se 'partidas'  e estas imaginavam-se nas palavras relatadas e ouvidas na telefonia ou escritas e lidas no jornal desportivo das segundas-feiras (sempre A Bola e em dimensões de deserto filmado por David Lean). Tudo o que era imaginado era grandioso e tudo no Benfica da minha infância era imaginado.
Os jogadores eram uma espécie de heróis da Marvel: Nené, Bento, Humberto, Toni, Pietra, Alves, Chalana ou Shéu ombreavam com o Batman, o Super-Homem, o Homem-Aranha ou o Capitão América. A vantagem dos nossos estava na águia ao peito, no rubro da camisola e no facto de serem do Benfica. Mas eram tão imaginados uns como outros, tão inacessíveis uns como os outros, tão mitificados uns como os outros, tão mitificados uns como os outros. Este era o tempo da pertença, o tempo em que dizíamos e vivíamos o 'sou do Benfica'.

Lisboa, início do século XXI e ser Benfica
a entrar na casa dos 30 aporto a Lisboa, vindo de Coimbra. É um preâmbulo de 'adultez', o estádio passou a ficar ao virar da esquina, os heróis passaram a ser quotidianos, o Benfica passou a ser tangível, acessível, imediato e fácil. Quase sem me aperceber, a expressão 'ser Benfica' tomava o lugar de 'ser do Benfica', a identificação com o clube ultrapassava a pertença ao 'Glorioso'. Ontologicamente, de repente, a fusão surgia, a sublimação da pertença racionalizava-se, reflectia-se e intelectualizava-se. Os sentimentos passavam a estar ao serviço da razão. Não deixava de ser do Benfica ia mais além, Obrigava a que se questionasse o rumo do clube, as suas lideranças, as escolhas e os caminhos. O Benfica passava a ser também cálculo e opinião. Os jogadores passam a ser 'activos' quando outrora haviam sido 'heróis' e pelo meio raramente foram vistos como 'homens-pessoas'. As cadernetas de cromos são trocadas pelas estatísticas, estudos e análises do desempenho individual e colectivo dos futebolistas e da equipa. O relatório e contas de uma sociedade anónima desportiva passa a ser tão escrutinado como eram os Cadernos A Bola dos tempos idos. Ser benfiquistas é já mais feito de 'ser Benfica' do que 'ser do Benfica'. E a nostalgia de sentir miticamente o Benfica vai crescendo na exacta medida em que nos afastámos dessa idade de todos os possíveis. O resultado é o futuro que se advinha.
Brevemente, é muito possível que venha a engrossar o coro de vozes que dizem 'o Benfica é nosso'. É um processo estranho este de passar da pertença, à posse, é uma viagem que se faz passando pela identificação e incorporação. Garret diria que é com naturalidade que Dom Quixote se transforma em Sancho Pança. Camilo Castelo Branco dividiria isto, metaforicamente, em coração, cabeça e estômago. Desejo apenas que a cabeça não permita que venha algum dia a confundir o coração com o estômago e achar que a pertença legitima a posse."

Pedro F. Ferreira, in Mística

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