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terça-feira, 14 de abril de 2020

Na companhia dos pássaros

"Por causa de um jornal antigo, lembrei-me de José Maria Nicolau, o Hércules do Cartaxo, o vencedor das tempestades. Por causa da sua têmpera, olho as ruas vazias sobre as quais a minha varanda se debruça neste tempo em que querem roubar-nos o carinho e fazer de cada um de nós cada vez mais só.

Na minha casa, debruçada sobre o Sado, vivo mergulhado em quilos e quilos de papel. Livros, revistas, jornais, correspondência (da antiga, antes do advento do e-mail), blocos de notas, simples rabiscos de todas as espécies. Às vezes deparo-me com uns e que merecem crónicas. Como o n.º 1 de Selecção - Semanário Gráfico de Todos os Desportos, publicação que saía às terças-feiras. Dia 21 de Setembro de 1948.
A peça, como elemento de informação e colecção, é um mimo. Distribui-se largamente numa exposição de imagens do que se passou no campeonato nacional de futebol do fim de semana anterior, dedica-se a contar a história do grande Ben Barek, o avançado marroquino que assinou pelo Atlético de Madrid por 1500 contos, a traz-nos à estampa Nicolau, José Maria Nicolau, uma das maiores figuras da história do Benfica.
Lança Moreira, que foi um dos grandes jornalistas da sua época, atirou-se a Nicolau como gato a bofe. Queria publicar as suas memórias, semanalmente, como se fosse um folhetim. E o Nicolau, rapaz humilde do Cartaxo, como do Cartaxo, também foi o seu grande rival e amigo, Trindade, a negar-se, a explicar que não sentia ter nada de interessante para dizer, que a sua vida fora monótona e etc. e tal e tal e tal.
Lança Moreira não era de receber um não como resposta.
Conseguiu fazer desembuchar o Hércules do Cartaxo, que era um latagão de força incomum, e pô-lo a desbobinar episódios atrás de episódios.
Nicolau contou a sua história. E o seu mundo.

Este outro mundo...
É bom dar vida, a palavras mortas. Como sabem, gosto de trazer para aqui os mestres, alguns deles ainda fizeram o favor de me ensinar o que puderam para que não envergonhasse a profissão de jornalistas, que é digna, que é útil e desinteressada, embora haja muitos a tentar contrariar esse desígnio.
'José Maria Nicolau... Este nome evoca uma época magnífica da velocipedia nacional e do nosso próprio desporto', começava por escrever Lança Moreira. 'O ciclista do Cartaxo firmou, com efeito, uma personalidade à parte. Combativo, lutador, temperamento de verdadeiro atleta, sentia e vivia as competições com um espírito de premente ansiedade, entregando-se de alma e coração à ideia de chegar à meta'.
Talvez só os mais antigos dos que têm a simpática paciência de me ler ainda recordem vivamente Nicolau. A minha obrigação, como cronista, é que os que o conheceram não o esqueçam, e que os que não o conheceram o memorizem.
Faleceu no dia 35 de Agosto de 1969 num acidente de viação. Venceu a Volta a Portugal em 1931 e 1934 com a camisola encarnada que traz uma águia desenhada em cima do coração.
Sim, Lança Moreira tinha toda a razão: não foi um enorme ciclista, foi um desportista emérito. Um nome para a história.
Em 1948, José Maria Nicolau era de uma simplicidade desarmante: 'Ora, eu já passei de moda... Quem se lembrará de mim?' A modéstia que acarinha os grandes campeões.
'Nesta altura talvez alguns amigos recordem o que fiz. Alguns adversários. Sobretudo o Trindade, de quem sou amigo desde a infância. Surgiram outros nomes, outros corredores de enorme valor. Ninguém perde tempo a olhar para o passado'.
Como haveria de se enganar, o grande Nicolau. Hoje, neste tempo de medos, neste mundo em que olhamos para os vizinhos do lado como inimigos prontos a trazerem o mal para dentro de nossas casas, no momento em que deixámos de poder abraçar a família, de beijar quem amamos, de tocar com carinho aqueles cuja ternura nos faz falta, olhamos para trás, sim, Nicolau, estejas onde estiveres. Olhamos para trás e para uma liberdade perdida que ansiamos reconquistar.
Do alto da minha varanda, sobre o Sado, divagando por entre papéis velhos e amarelecidos que me trazem momentos como este, parece que o mundo ficou vazio e nada mais tenho do que a companhia dos pardais que pousam, tranquilos, nos parapeitos aquecidos pelo sol.
Tenho centenas de abraços para dar, e não me deixam dá-los. Tenho de apertar os meus filhos contra o peito e dizer-lhes, baixinho, ao ouvido: 'Está tudo bem, eu estou aqui...'. E estou, não estando. Estou à distância com esta mágoa que me aflige de os saber longe, lutando à sua maneira contra a doença infame que vai apertando o cerco em nosso redor.
Escuto a voz da Bethânia ao mesmo tempo que escrevo sobre José Maria Nicolau, o vencedor das tempestades:
'Sonhar mais um sonho impossível
Lutar quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender...'
Olho os pássaros na sua invejável liberdade. Quero correr para voltar a ver o brilho dos teus olhos. Quero beijar a testa dos meus pais com aquela meiguice infinita que me ensinaram na infância.
Na minha casa sobre o Sado, os pássaros cantam a melodia da tristeza.
'Sofrer a tortura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão'.
Ontem, ao telefone, o Manuel Alegre dizia-me: 'Vivi eu no exílio sem nunca imaginar que iria um dia viver exilado na minha própria casa'. Desculpe-me o meu grande amigo Manel, mas eu recuso o exílio. Estou no meu posto! Do alto da varanda sobre o rio tenho as mãos presas ao leme da esperança e desafio todos o caminharem a meu lado levados pela corrente inóspita de uma batalha ganha dia a dia com a espada afiada da paciência.
Eu vou. Tenho gente por quem lutar, tenho gente por quem continuar a viver, tenho gente a quem devo um mar inteiro de ternura que trago preso nos braços como um peso insuportável. Vou. Levo os pássaros comigo. E tu, não fiques para trás, companheiro! Não deixes que ninguém esqueça!"

Afonso de Melo, in O Benfica

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