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terça-feira, 28 de abril de 2020

Aquele homem que vinha do ano 2000

"Em Barcelona, no Camp Nou, num amigável disputado em Outubro de 1966, Eusébio teve momentos fascinantes e marcou um golo que deixou de boca aberta mais de 60 mil espectadores. Enfim, repetia o que havia feito pouco antes, em Inglaterra, no Mundial

Estou preso. Estamos todos? Do alto da varanda vejo o Sado. Saí pela manhã, caminhei pelas ruas estreitas com as portas todas fechadas, dei a volta ao Campo de Touros, caminhei ao longo do rio, de encontro ao sol, semicerrando os olhos, voltei para a varanda onde escrevo, onde escrevo todos os dias, a todas as horas agora sem tempo, qualquer hora serve desde que os textos cheguem com tempo à redacção, é apenas isso que esperam de mim, e não estou habituado a viver sem exigências.
Estou preso no meu sótão, que, como já disse, se debruça sobre o Sado, e escrevo até cansar os dedos no qwert desta nova máquina de escrever que é o computador, e eu tenho saudades da minha antiga Remington, de ferro bruto que herdei do meu avô Joaquim e metralhava ao longo das madrugadas.
Estou preso entre papéis antigos, jornais que perderam as datas. Há um que diz: 'Como vamos viver no ano 2000!'
Tenho vontade de perguntar 'e como vivíamos em 1966?', que é o ano que aparece na capa, por debaixo do título.

Faz tanto sentido uma coisa como a outra, não acham? Não conhecer o futuro é como esquecer o passado. E, porra!, como 2000 já é passado!



Rapaz do futuro!
Uma misturada de coisas, página a página.

O Benfica está em Barcelona, diz uma página.
O professor Joseph Tropes, da Universidade de Washington, avisou que ia provocar os alunos e desatou a tirar a roupa no meio de uma aula até ficar só peúgas.
Um americano reivindicou parte da superfície lunar e avisou que quem lá puser os pés vai ter de pagar uma taxa.
Morreu um cão que gostava de cerveja. A culpa é da cerveja? Não diz. Jornalismo incompleto.
Anuncia-se a construção de um autódromo na estrada Estoril-Sintra. E não é que construíram mesmo?
Foram detidos dois carteiristas na Baixa.
Ainda acham que não há nada para fazer nestas tardes em que nos fecharam em casa? E o mundo todo lá fora? Até este mundo que já foi?
Fernando Riera revelou de véspera a equipa que irá jogar em Camp Nou, contra o Barça, um jogo particular: Costa Pereira; Cavém, Humberto, Jacinto e Cruz; Santana e Coluna; José Augusto, Torres, Eusébio e Iaúca.
Eusébio vai receber um prémio: Troféu Euroevent, troféu para o melhor futebolista do Mundial de Inglaterra, oferecido pelos seus colegas espanhóis, já que a FIFA preferiu Bobby Moore.
Tenho de ir à procura do jornal do dia seguinte para saber resultado: 1-1.
Dia 13 de Outubro de 1966.
60 mil pessoas em Camp Nou: despedida de dois dos favoritos do Barça, Vergés e Gràcia. Ficou desde logo combinado que o Barcelona jogaria na Luz para o jogo de despedida de Ângelo.
Zaballa fez 1-0 no minuto 1.
Os culés levantaram os rabos dos assentos e festejaram felizes, confiantes na vitória gorda.
E os jogadores do Benfica, sobre a relva, como se nada tivesse acontecido, como se continuasse tudo a zeros, trocando a bola, lançando movimentos pelas alas, escutando as ordens de Coluna.
Os catalães ficam confusos. Pareciam senhores dos acontecimentos e, afinal, andavam atrás dos adversários, obedeciam ao seu ritmo, vogavam à bolina da vela que este erguia no meio-campo e no ataque, Pereda, Zaldúa e Zaballa irritavam-se uns com os outros, gesticulavam a torto e a direito, e a bola sempre nos pés dos portugueses, pela direita, pela esquerda, pelo meio, de repente Eusébio, Eusébio o repentista, de fora da área, pontapé fulminante de canhão carregado de pólvora, golo e que golo!, até o guarda-redes Sadurní abriu os braços como se dissesse: 'Que diabo podia eu fazer?' De facto, não podia.
Era amigável. A expressão caiu em desuso, mas era assim que se dizia e escrevia: amigável. Depois de uma hora em que vermelhos e azul-grenás fizeram um esforço real para ganhar, a modorra tomou conta de Camp Nou. O público tivera direito aos seus 60 minutos de espectáculo (e sobretudo àquele remate tonitruante de Eusébio), os jogadores achavam-se agora com direito ao seu descanso ou, melhor, ao seu recreio, iam desenhando movimentos estéticos mas de balizas ao longe, o tempo a passar, substituições atrás de substituições, o contrato estava cumprido, ninguém saía com razão de queixa, vendo bem.
Da minha varanda sobre o Sado sou capaz de imaginar o golo de Eusébio. Vi-lhe tantos e tantos e tantos. 1966: tinha sido, em Inglaterra, um tipo extraterrestre. Alguém vindo do futuro para jogar um futebol que ninguém ainda vira ser jogado. Talvez continuasse no ano 2000. Tão, tão à frente de todos os outros. Sempre tão Eusébio!"

Afonso de Melo, in O Benfica

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