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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Quem ‘treina a dor’ do treinador?

"Com Lili Caneças aprendemos que “estar vivo é o contrário de estar morto”. Por sua vez, Gustavo Santos revelou-nos que a mente se chama mente “porque nos mente todos os dias”. Finalmente, em Outubro de 2013, o então técnico da Olhanense, Abel Xavier, contribuiu para este segmento de ‘etimologia para totós’ explicando que “o treinador, e a palavra explícita ‘treinador’ - treina a dor. Tem que ser um ‘lutador’ - luta a dor. E tem que ser um ‘vencedor’ - vence a dor”.
Questões gramaticais – e fenómenos virais – à parte, as palavras de Abel Xavier servem de ponto de partida para uma reflexão até agora algo distante dos holofotes mediáticos: quem treina ‘a dor’ dos treinadores?
Nos últimos anos, a temática da saúde mental dos desportistas tem conquistado espaço nos meios de comunicação social. Do ‘boxeur’ Tyson Fury ao ex-jogador da NBA Delonte West, passando pelo ciclista australiano Rohan Dennis e pela patinadora escocesa Elise Christie, sucedem-se os relatos de ‘estrelas’ do desporto mundial sobre depressões, ataques de pânico, consumo descontrolado de álcool e drogas, distúrbios alimentares e, inclusive, pensamentos suicidas. No futebol, o suicídio de Robert Enke em 2009 e o recente documentário realizado por Asif Kapadia para a Amazon sobre a vida atribulada de Diego Armando Maradona são apenas dois exemplos que põem as fragilidades emocionais de alguns astros do desporto-rei.
No entanto, pouco ou nada se ouve falar da saúde mental dos treinadores, a quem tudo parece exigível: conhecimento tático e técnico, carisma, liderança, experiência. Resiliência, capacidade comunicativa, soft skills. Um bom ‘boneco televisivo’, mestria na negociação e gestão de conflitos, autoridade no balneário. Ser um bom gestor de recursos humanos, ter um conhecimento profundo da realidade dos campeonatos nacionais. E distritais. E das 30 melhores ligas estrangeiras. Admirar Klopp, Guardiola, Mourinho, Bielsa e Sampaoli. Por esta ordem, ou por outra, dependendo da direção do vento competitivo. Ser o primeiro a chegar e o último a sair do centro de treinos. And so on…
Ser treinador acaba por ser uma tarefa hercúlea, dada a enorme pressão colocada nos ombros de quem exerce uma profissão em que se anda “sempre com a mala feita”, nas palavras de Jorge Jesus. Uma pressão quase sempre sem escape, já que de um líder se esperam soluções e não problemas. O desporto, e especialmente o futebol, são hoje ainda caracterizados por uma hiper-masculinidade que desaconselha os treinadores a mostrarem vulnerabilidade, sob pena de serem vistos como ‘fracos’ ou ‘sem pulso’.
Franze-se o sobrolho perante rugas, cabelos brancos, ou mostras de cansaço. Preenche-se cada vez mais os calendários competitivos, fazendo que, tal como os jogadores, os treinadores passem também cada vez mais horas em treinos e estágios e cada vez menos tempo com as famílias. Que o diga Bruno Lage, que desde que assumiu o comando da equipa principal do Benfica teve direito a uma melhora substancial de salário, mas perdeu tempo com os mais queridos:
“O meu filho fez quatro anos e este é o segundo aniversário que perco, isso é que não recupero mais. O nosso sentimento é esse: o tempo não volta atrás, não compramos tempo e o que temos de fazer é aproveitar ao máximo o tempo que está a acontecer”.
Enquanto os jogadores descansam, cabe às equipas técnicas fazerem a avaliação do jogo anterior e a preparação dos seguintes. A vertigem é contínua, e traz consigo uma grande probabilidade de consequências nefastas para a saúde mental (e física), que apesar de ainda pouco visíveis – e pouco discutidas – são bem reais.
Uma curta viagem pelos trilhos da memória leva-nos até ao emocionante discurso de Quinito, no Fórum do Treinador de 2016, em que o técnico setubalense falou do impacto causado pela perda do filho, que o levou a deixar os bancos.
“Não ouvi o meu filho dizer pai pela primeira vez, não vi o meu filho aprender a andar de bicicleta, não o abraçava todos os dias, passavam-se meses que não o abraçava e ele agora não está cá. A culpa é do futebol, há um certo divórcio”.
Apesar de já ter alguns anos, o documentário alemão “Trainer!”, em exibição na plataforma Netflix, ajuda também a perceber que há um ‘lado B’ na vida dos treinadores. Afinal, entre eles e o Olimpo há uma distância bem maior do que aquela imaginada por todos os que assistiram aos anúncios da American Express protagonizados por José Mourinho na década passada.
Em “Trainer!”, o realizador Aljoscha Pause acompanha três jovens treinadores profissionais em treinos, jogos, e no raro tempo que passam em casa, recolhendo ainda depoimentos de uma honestidade pouco comum por parte de nomes mais sonantes como Jürgen Klopp, Hans Meyer ou Armin Veh. O ex-responsável pela formação de treinadores da Federação Alemã, Frank Wormuth (actual treinador do Heracles, da primeira liga holandesa), fala da impossibilidade de preparar treinadores para a pressão “insana” do futebol contemporâneo, onde há apenas “stress, stress e mais stress”.
Tal como os jogadores, os treinadores são hoje também verdadeiros “performers”, que precisam de ser apoiados devidamente. Em alguns clubes – muito poucos ainda – há já esta consciência, e os treinadores são acompanhados e aconselhados por especialistas em psicologia. Mas há muito por fazer, especialmente tendo em conta a assustadora frequência de ‘chicotadas psicológicas’ no futebol atual e a falta de apoio aos treinadores no desemprego. E há também muito a regulamentar neste sector, em que se fazem ‘lifestyle’, ‘executive’, ‘business’ e ‘mental’ coaches num par de fins-de-semana, dificultando, e muito, a separação do trigo e do joio, com prejuízo para quem a eles recorre. 
Ainda que muitos técnicos refiram publicamente que os períodos ‘fora do activo’ são momentos ideais para “recarregar baterias” e “passar tempo com a família”, a verdade é que a falta de equilíbrio entre a vida pessoal e profissional pode torná-los mais propensos a distúrbios depressivos. Especialmente no caso de ex-jogadores que transitam para a função de treinador imediatamente após pendurarem as chuteiras, sem terem qualquer experiência para lá da ‘bolha’ do futebol, o que pode limitar a sua capacidade de separarem a pessoa do profissional.
Num país em que se teima em falar muito pouco de jogo e demasiado do que o rodeia, levar mais a sério a saúde mental de todos os agentes desportivos, incluindo treinadores, seria algo muito benéfico, ajudando potencialmente a evitar mais tragédias e sofrimento em silêncio. É que, no ‘jogo’ da vida, ainda não há videoárbitro…"

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