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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

O gesto infame do sr. Silva

"Eusébio sempre com amargura o dia 4 de Outubro de 1964. Nas Antas, frente ao FC Porto, foi expulso por querer ajeitar a bola antes da marcação de um livre. Saiu desesperado. Os adeptos portistas aplaudiram-no, solidários.

'Foi uma expulsão tão injusta, que nem fui castigado. O árbitro era o Porfírio da Silva. O jogo estava empatado (1-1), com um golo meu de livre, aos 6 minutos, e outro de Carlos Baptista, aos 26. Fui ajeitar a bola para apontar outro livre, no mesmo local do primeiro, quando o árbitro me fiz para não mexer na bola. Mas eu precisava de a ajeitar. E ele então expulsou-me. Foi de tal forma injusto, que o público começou a aplaudir-me, e o treinador do FC Porto, que era o Otto Glória, me veio abraçar'.
Desabafo de Eusébio.
Essa tarde de dia 4 de Outubro de 1964 iria ficar-lhe para sempre na memória. Com mágoa.
Dificilmente houve jogador mais correcto do que Eusébio. Eusébio, o massacrado. Eusébio perseguido a patadas por adversários miseráveis como se fosse uma ratazana. Eusébio espezinhado, de joelho desfeito. E nunca se revoltava, nunca tomava para com os seus algozes atitudes grosseiras. Levantava-se e corria e rematava. Vingava-se com golos. A sua alegria, de braços erguidos para o céu, feria-os mais do que qualquer insulto.
Estavam decorridos 38 minutos. O encontro terminaria 1-1. Na primeira mão (a Taça de Portugal jogava-se então a duas mãos), na Luz, o Benfica tinha vencido por 4-1 com 2 golos de Eusébio.
38 minutos tinham bastado para que a infâmia de Porfírio da Silva entrasse para a história do futebol português.

Um homenzinho prepotente
Não é fácil jogar na Antas. Nunca foi. Às vezes pela qualidade inequívoca de grandes equipas do FC Porto. Outras vezes por morar ali um sentimento de despeito que conduz a comportamentos selvagens. E não, não apenas contra jogadores ou treinadores. Também contra jornalistas, por exemplo. Sei bem do que falo. Muitas vezes fui maltratado.
Uma filosofia, se quiserem. Uma forma de estar na vida. Eles contra todos. Contra, o país por quererem ser um país. Contra o Sul por desprezarem tudo o que não seja a sua idiossincrasia. Eles, disse eu, mas não todos, claro. Falo do clube. Ou se uma mentalidade que se instalou no clube com a chegada de José Maria Pedroto e do mais fiel dos seus alunos, Pinto da Costa. A incultura do ódio.
Perco-me. Volto atrás: a Eusébio. Mil novecentos e sessenta e quatro. Tinha 22 anos. Só fora expulso uma vez, antes dessa. Para a Taça Ribeiro dos Reis, uma competição de reservas, frente ao Barreirense. 30 de Junho de 1963: derrota do Benfica por 1-5.
Aos 38 minutos, os encarnados passavam a jogar com dez. Até aí tinham dominado o jogo por completo. Eusébio e José Augusto obrigavam Rui a viver em sobressalto.
Vem o livre contra o FC Porto. Ainda por cima, vejam só! Eusébio ajeita a bola como era seu hábito. Põe-na no lugar exacto no qual o seu pé direito irá aplicar o remate poderoso, assustador.
Mas há um fulano que quer ser mais do que Eusébio. Mais importante do que Eusébio. Chama-se Porfírio da Silva, e o seu nome só se recorda para que a canalhice não passe anónima.
Prepotente, sente-se desautorizado, logo ele, um desqualificado. Não havia cartões, nesse tempo. Só começaram a ser utilizados seis anos mais tarde, no Campeonato do Mundo de 1970, no México, a que Portugal, o terceiro classificado de Inglaterra, em 1966, faltou. O gesto do sr. Silva é inequívoco. Aponta para fora das quatro linhas. Eusébio não irá marcar esse livre directo. Saí desesperado. Humilhado e ofendido como uma personagem de Dostoiévski.
Profírio da Silva deve ter sentido de uma suprema satisfação interior, imagino eu. Por uma questão de milímetros, bola mais à esquerda ou mais à direita, expulsou Eusébio. As Antas humilharam-no, aplaudindo Eusébio - gesto de profunda grandeza. De pouco serviu ao FC Porto. Dez indomáveis benfiquistas mantiveram-se vivos, contra o adversário, contra o público contra as manigâncias do sr. Silva.
Eusébio fica de fora. Sente a revolta dos companheiros à mistura com a sua própria revolta. Não vai esquecer. Não vai esquecer nunca. E recordava-se desse dia com amargura."

Afonso de Melo, in A Bola

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