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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Houve um tempo em que fomos todos macacos

"Cheguei a Portugal com 9 anos. Da escola aos meus vizinhos mais próximos, houve sempre quem tentasse tirar partido do facto de eu ser preto e eles brancos. Posso inclusivamente confidenciar que a minha mais velha amiga em Portugal e madrinha da minha filha (têm o mesmo nome) cresceu sob a influência de um pai racista. Na escola ou fora dela eram constantes as manifestações de superioridade racial quando ouvia coisas como: “Para preto, falas muito bem”. Ou: “Tu és preto mas não és burro”.
Portanto, desde cedo fui habituado a olhar e a sentir na pele esse problema. Desde situações em que o pai da minha grande amiga dizia para ela não se juntar aos pretos, ao tratamento policial discriminatório, a que assisti de perto, à minha família adulta, até às perseguições dos seguranças à entrada das lojas onde vou fazer compras: fui crescendo com uma noção clara de que os pretos, como eu, teriam sempre de ser muito melhores e fazer muito mais para vingar numa sociedade dominada por tons pálidos.
Enquanto joguei futebol (nunca profissional), desde a formação até aos seniores assisti e senti vários ataques racistas. A mim, a outros colegas de equipa e a jogadores adversários. Enquanto treinador, ainda mais. Fossem os pais dos jogadores da minha equipa ou o público adversário que assistia ao jogo da bancada. Os sons a imitar macacos, chimpanzés ou outros primatas, as vozes que gritavam “preto de merda”, “vai para a tua terra”, ou, pior, os apedrejamentos que apenas seleccionavam os elementos da equipa com a pele mais escura são-me tremendamente familiares.
Conheço-os bem, vivi de perto, senti na minha pele escura o peso do tom que ela carrega.
Porém, tive a sorte de conhecer um irmão branco que me deu uma outra mãe, um outro pai, uma outra família que me ama tanto como se tivesse sido fruto da criação deles. Nunca me limitaram ou sequer insinuaram alguma coisa por causa das nossas diferenças, mas sempre me abraçaram por aquilo que nos unia. Com eles e com a minha mãe preta aprendi que, enquanto os insultos não limitassem as minhas acções eu deveria fazer o máximo possível para responder com mais elevação, uma vez que era essa a melhor forma retirar importância a quem se sentia importante sempre que me sentisse ofendido. Endureci com a experiência, tornei-me um pouco mais frio, e com isso fui-me sentindo cada vez menos vítima e cada vez mais parte da solução de um problema que me afectava de forma profunda.
O racismo é, e tem sido, um grande flagelo de uma sociedade evoluída que se quer pintar como multicultural. É parte de um problema maior – a discriminação -, e a forma como tem sido ignorado não ajuda a que se encontrem soluções para um problema real e que afecta vários quadrantes sociais. Há quem tente omitir que o problema existe, e esse ponto de partida é o que tem impedido em larga medida que se encontrem soluções duradouras, para lá da moldura penal, que nos eduquem de forma adequada para conseguirmos dar melhores respostas quando enfrentamos uma situação clara de discriminação.
Não criticando as diferentes reacções que os alvos de racismo podem ter, uma vez que cada um tem uma experiência de vida diferente, sentiu coisas diferentes, aprendeu coisas diferentes, e tem todo o direito de agir em legítima defesa, a melhor resposta a dar aos parvos que discriminam é retirar importância ao acto. E isso, à longo prazo, acabará por ter repercussões em massa. Pensemos nisso como numa criança que encontra o ponto de fragilidade para irritar outra: quando isso acontece, a criança não para enquanto o outro se sentir irritado pela brincadeira. Quando, num acto de lucidez, a outra criança deixa de se importar, a brincadeira deixa de ter piada e termina. De repente, uma vítima transforma-se apenas num alvo que não se deixa vencer pela parvoíce alheia. Claro que o problema também deve ser atacado numa perspectiva de educação, e de punição (em casos graves) por parte de quem discrimina; mas educar quem sofre a saber defender-se é parte importante da solução e ninguém parece ter grande interesse em pensar nisso.
Todos nos lembramos de como o Cristiano Ronaldo, durante um largo período, era assobiado em todos os estádios por onde passava. Uma vez ele referiu numa entrevista que esse tipo de recepção hostil o motivava ainda mais a vencer o jogo e a querer marcar golos ou fazer assistências. A coincidência disso é que durante um par de anos ele foi fazendo golos nos estádios onde era mais maltratado, e nos anos seguintes desapareceram os apupos. A resposta dele não foi vitimizar-se, mas sim responder de forma superior e o problema deixou de existir.
Claro que estamos a falar de alguém com uma força mental extraordinária, mas a sociedade cresceu e evoluiu sempre que se fez uso dos melhores exemplos do passado para educar o futuro. É também óbvio que a educação, a aculturação de comportamentos, não se faz a curto prazo. Como em tudo na história, o reflexo das acções percebe-se ao longo de gerações; mas temos uma oportunidade única para começar a pensar que o problema está nos parvos que usam a discriminação para atacar os alvos que definem, mas também na vítima que não se sabe defender de forma a que aquele agressor não a volte a alvejar.



Os parvos vão continuar a existir e dependendo do tipo de resposta que lhes dermos, dependendo se recompensamos ou não os desejos que eles têm de que nos sintamos ofendidos, estaremos a incentivar mais ou menos o uso dessa parvoíce como arma de ataque. As vítimas podem ser sempre grandes agentes catalisadores de uma resposta positiva e duradoura.
Houve um tempo em que fomos todos macacos. Aprendi com Daniel Alves a melhor resposta."

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