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terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Uma vida em estrofes, como um poema

"Rogério Lantres de Carvelho, o Pipi. A sua vida enorme, à medida do seu talento. Ficará para sempre a sua imagem galante, de cavalheiro, erguendo a Taça Latina, com aquela vaidade intrínseca dos que sabem o que valem

18 de Junho de 1950: Rogério Lantres de Carvalho ergueu a Taça Latina no Estádio Nacional.
Ficará para sempre como uma das mais icónicas imagens da história do Benfica.
No Chiado Terrasse, a atriz Irene Isidro cantava:
'Batem nossos corações
E o orgulho nos domina
Festejando os campeões
Heróis da Taça Latina
O mundo já não ignora
Este clube sem igual
Que leva p'lo mundo fora
O nome de Portugal!'
O clube sem igual era o Benfica. Rogério, o Pipi, também ele sem igual..
Pipi porque vestia com elegância, era um dândi. E jogava com a elegância de um cavalheiro, ora sobre a direita, ora sobre a esquerda, mas sempre com a baliza nos olhos. Nunca desperdiçava um golo que era seu. Mas não desprezava a finta, a fírula. Numa final da Taça contra o Sporting dobrou o imenso Octávio Barrosa com uma golpe que foi falado durante anos nos cafés da capital. Barrosa ficou estendido no chão, as pernas trocadas. Depois levantou-se e cumprimentou Rogério. Tempos de infinita grandeza.
A Taça de Portugal foi sempre uma festa para o Pipi. E como ele gostava de festas.
Em fez anos venceu seis: de 1943 e 1953. Marcou golos como nenhum, em finais: 15
Cerca vez, numa entrevista, ele que já tinha desistido de falar, contou uma história: «Tinha 19 anos, e era o miúdo. 'Temos de dar uma alcunha ao miúdo...', ouvia eu do Gaspar Pinto e do Francisco Albino. 'É o Espinha, que ele é alto e magrito, e parece.se com uma espinha!', disse o Albino. E eu: 'Não! A mim não me chamam isso!' E ele: 'Então és o Pipi, já que andas sempre todo engravatado, e todo penteadinho! Ficas Pipi!' Não me importei. Ia na rua, e toda a gente me conhecia: 'Olha o Pipi! Vai ali o Pipi do Benfica!' Sobretudo as raparigas...»
Veio de Chelas e voltou a Chelas. Jogara no Chelas antes de jogar no Benfica, Peyroteo, seu colega no Grémio das Carnes, deixou-se fascinar pelo seu jogo em rapidez, drible, correcto, sempre galgando metros com a bola perfeitamente controlada, pelo seu remate impecável como um fato por estrear. Tentou levá-lo para o Sporting. O seu irmão, Américo França, desviou-o para o Benfica. No Benfica ficou até à época de 1954-55. Depois veio Otto Glória e o profissionalismo. Rogério regressou a Chelas, com trinta e dois anos, já o Chelas se juntara ao Fósforos para dar o Oriental, jogou na Azinhaga dos Alfinetes, era o seu bairro, a sua gente.

De Lisboa ao Rio e volta
Antes de Otto, já o Pipi tinha sido profissional. No Botafogo. No Rio de Janeiro. Corria o ano de 1947. 'Eles davam-me 5000 cruzeiros de ordenado, o que equivalia a 6000 escudos, mais 3500 por vitória em cada jogo. Eu disse-lhes que não queria assim, porque sabia lá se ia jogar. Pedi 15000 cruzeiros mais um apartamento a renda paga por eles sem os prémios de jogo. Aceitaram'.
No Botafogo já havia um Pipi. Um Pipi brasileiro: dr. Heleno de Freitas, o craque-galã. Heleno era um louco em potência e morreu louco sem saber que era Heleno. Frequentava as noites do Rio, não falhava os casinos, entupia-se de lança-perfume, a droga da época, refastelava-se de mulheres. Não gostou de Rogério. Era demasiado galã, como ele. Marcos Eduardo Neves escreveu um livro chamado: Nunca Houve Um Homem como Heleno. E diz: 'Bastava um passe equivocado ou um cruzamento torto no novato português, que o centroavante gesticulava e o xingava diante dos companheiros e da torcida'. Juvenal, companheiro de equipa de ambos, acrescentou: 'Se o Rogério acertasse metade das bolas que tentou, o Heleno o colocaria nas nuvens; ia se consagrar no futebol brasileiro. Só que ele errava uma, duas, a pressão aumentava, o Heleno se descalibrava, humilhava, irritava, e o Rogério só faltava chorar. «Acho melhor você tirar as chuteiras e calçar tamancos», gritava-lhe'.
Rogério não teve paciência para a impaciência de Heleno. Voltou a Lisboa. De barco, porque a mulher, grávida, apanhara um susto no avião da ida. Etapas atrás de etapas: Lisboa-Dacar-Recife-Ilha do Governador.
Voltou a tempo, muito a tempo. A vida deu-lhe tempo. A morte só o requisitou agora, aos 97 anos.
Trouxe 50 contos no bolso. Comprou um carro e arranjou emprego. O dono do stand não desperdiçou o seu estilo catita, cheiroso, convidou-o para vendedor de automóveis. O Pipi não era só de dar nas vistas, sabia falar, era educado, galante, tinha lábia. E ganhava dinheiro, muito dinheiro. Um conto e quinhentos por cada furgoneta que vendia: 'Um dia, o José Luís Vicente, ali da Rua Morais Soares, comprou-me dez furgonetas. Um dinheirão!'
De volta ao Benfica, Rogério Pipi reencontrou uma espécie de irmão: Júlio Correia da Silva, o Julinho. Rogério e Julinho chegaram ao Benfica no mesmo ano: 1942. Jogaram lado a lado dez épocas. Foram jogadores extraordinários e ficarão indelevelmente marcados na vida do clube do seu coração. Entre anos extraordinários, um houve ainda mais extraordinário: 1950. Melhor dizendo: uma época extraordinária, a de 1949/50. Nessa época, Julinho marcou 30 golos em jogos oficiais (Campeonato Nacional e Taça Latina, já que não se disputou a Taça de Portugal), e Rogério assinou 16. Foram eles, logo seguidos por Arsénio, os principais responsáveis pela veia goleadora de uma equipa que realizou 29 jogos oficiais com um registo fantástico de 94 golos (uma média a rondar os 3,24 golos por jogo).
A lenda de Pipi pode contar-se em cantos como Os Lusíadas. Pode dividir-se em estrofes, como um poema.
Dois treinos por dia, remuneração fraca. Rogério era dono de si próprio. Tinha dinheiro e tinha vida. O futebol era, quando muito, a coisa mais importante das cosias menos importantes. Ele que, no dia 28 de Maio de 1944, noutra final da Taça, face ao Estoril, nas Salésias, marcou cinco golos. Ah! Sim, Pipi foi único.
A gente olhava para o seu cabelo bem penteado, já branco, para os seus olhos perscrutantes, para o seu rosto bem barbeado, e via o homem e a vida. Tinha tanta vida até ao momento de se recolher, com as dores tão suas que escondeu de todos. Tornou-se um fantasma. Recordávamos-lhe as recordações. Rogério Pipi erguendo a Taça Latina. Para sempre. Nesta semana, a odienta senhora da galdanha bateu à porta de sua casa. Levou-o sem olhar para trás. Podia ter jogado de fato e gravata. Era um senhor. Entrará pelas portas do céu com a elegância de um convidado. Quem estiver à porta far-lhe-á um vénia. E ele sentir-se-á em casa..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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