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sábado, 23 de março de 2019

José Mourinho: do que não se fala...

"“Emil Cioran evocou que, enquanto estavam a preparar a cicuta que mataria Sócrates, este estava a aprender a tocar uma música na flauta, facto que provocou a surpreendida pergunta: “Para quê’”, expressiva do pragmatismo na iminência do fim. A resposta teria sido: “Para saber tocá-la, antes de morrer”. (Annabela Rita, Do Que Não Existe, Manufactura, Lisboa, 2018, p. 13). Verdade ou lenda, parece certo que, para Sócrates, o conhecimento é a antecâmara da virtude. Para George Steiner, n’A Divina Comédia, Dante (século XIV) “propõe-se incluir, no campo do potencial ascendente do entendimento humano – o moto spirituale – a história da criação e dos lineamentos do além” (Gramáticas da Criação, Relógio D’Água, Lisboa, 2002, p. 92). Para Bento de Espinosa (1632-1677), o culto e metódico Espinosa (tão culto e metódico que o seu fichário de conhecimentos ainda é de grande actualidade), no universo há uma só substância, sendo a substância infinita, ou seja, com todos os atributos pelos quais se manifesta. Nesta perspectiva, podemos escrever, sem receio, que fica de uma indigência confrangedora qualquer síntese, mesmo miudamente relatada, do humano, que não tenha em conta a complexidade que o ser humano é. Luís Lourenço, o mais fiel e o mais competente (porque o conhece, como poucos o conhecem) dos seus biógrafos, no livro Mourinho – a descoberta guiada (Prime Books, Lisboa, 2010) dá especial relevo ao paradigma da complexidade. E, para tanto, cita Edgar Morin: “O homem é um ser evidentemente biológico. É, ao mesmo tempo, um ser evidentemente cultural, metabiológico e que vive num universo de linguagem, de ideias e de consciência. Ora, estas duas realidades, a realidade biológica e a realidade cultural, o paradigma da simplificação obriga-nos a fazê-los elementos do mesmo todo: um não vive sem o outro, ou melhor, um é simultaneamente o outro, embora sejam tratados por termos e conceitos diferentes” (Introdução ao Pensamento Complexo, Instituto Piaget, Lisboa, 2003, p. 86).
Para Teilhard de Chardin, não pode percepcionar-se, cientificamente, qualquer “fenómeno”, incluindo o “fenómeno humano”, sem introduzir um terceiro infinito, o infinito da complexidade, ao infinitamente grande e ao infinitamente pequeno. No universo, os corpos não são unicamente grandes e pequenos, mas também simples e complexos. E, entre os seres complexos, o ser humano, porque de todos o mais complexo, é indubitavelmente o que evidencia mais evolução e a promessa de maior e melhor desenvolvimento. O movimento é vida, ou seja, tudo o que é vida se movimenta – para onde? Por outras palavras: o universo não é estático, mas dinâmico e… qual o sentido deste dinamismo? A lei da complexidade-consciência diz-nos que tudo caminha para uma complexidade crescente, a caminho do espírito. São palavras de Teilhard de Chardin: “Pela sua fracção axial, vivente, o universo deriva, simultânea e identicamente, para o supercomplexo, o supercentrado, o superconsciente” (I, p. 36). Em tese de doutoramento, que fez história, José Gomes Silvestre anima assim a evolução, em Teilhard de Chardin: “segue-se que o motor da evolução, a sua lei directriz, é o caminho para a espontaneidade, para a liberdade, para a consciência. A liberdade é a ponta extrema da evolução, o seu sentido, a sua redenção, a sua vitória – vitória do espírito sobre a matéria, vitória do uno sobre o múltiplo, do universal sobre o individual e, mais do que tudo, vitória da vida sobre o movimento entrópico, vitória do ser sobre o nada” (Acção e Sentido em Teilhard de Chardin, Instituto Piaget, Lisboa, 2002, p. 146). Pela evolução, pela transcendência em direcção ao mais-ser, o universo caminha, imparavelmente, para a consciência e para a liberdade. Para Teilhard, o objectivo último é sempre o essencial. Nada pode frutificar, finalmente, se não existir já, como promessa, na semente, no princípio…
Só que aquilo que eu sou pouco vale diante das constantes culturais em que vivemos e também somos. Ora, a partir da modernização europeia de Portugal, na década de oitenta (e sigo o que Miguel Real observou e analisou criticamente, na cultura portuguesa) “operou-se uma enorme alteração, nos sectores produtivos da economia, com a terciarização desta a suplantar os sectores primário e secundário”; operou-se ainda “uma evidente alteração , na estrutura política do Estado, com a passagem de um sistema corporativista para um sistema de representação democrática parlamentar ao modo da Europa Ocidental”; verificou-se “uma forte alteração do lugar geográfico e estratégico internacional de Portugal, deslocando-se o ângulo de actuação e reacção do Atlântico (o Império) para a Europa”; acentuou-se uma radical alteração dos vínculos institucionais clássicos da cultura e dos complexos comportamentais dos portugueses, como a dependência da Igreja e uma secular ligação à família clássica; descambou-se num pronunciado descrédito “das antigas profissões nobres como a do professor, do político, do militar, do historiador, do sacerdote e do intelectual, substituídas pelo técnico especialista em economia, em gestão e em ciência experimental, pelo jornalismo superficial e pelo comentador televisivo, ora considerados de superior valia e utilidade” (Traços Fundamentais Da Cultura Portuguesa, Planeta, Lisboa, 2017, pp. 111/112). O Dr. Mário Soares, agarrado a princípios democráticos e republicanos que, por coisa nenhuma, consentia em abandonar, foi, depois do Marquês de Pombal, das Invasões Francesas e do Liberalismo Constitucional, o político português que mais contribuiu à europeização e modernização de Portugal e, com a europeização e a modernização de Portugal e com uma população, principalmente urbana, culturalmente mais letrada, o nosso desporto europeizou-se e modernizou-se também. A esmagadora maioria das nossas vitórias desportivas internacionais acontecem (e não é por acaso) no pós-25 de Abril…
O José Mourinho, intelectualmente, é um super-dotado e, porque no nosso País se cumpriram, quase integralmente, os anseios iluministas para Portugal, encontrou, principalmente no Ensino Superior, um ambiente favorável ao desenvolvimento das suas virtualidades. A passagem do INEF ao ISEF e do ISEF à FMH resulta de verdadeiras “revoluções científicas”, que até, noutras universidades de muito bom nível epistemológico e científico, se admiram e aplaudem. Portanto, na Cátedra com o meu modestíssimo nome, que a Universidade Católica Portuguesa fez-me o favor de aprovar, após um trabalho de pesquisa que muito me surpreendeu, em qualquer hermenêutica específica avultam também os nomes dos professores e alunos (do meu tempo, no INEF e no ISEF e na FMH) que, concordando ou discordando das minhas ideias (principalmente as epistemológicas) me obrigaram a um estudo mais honesto e mais persistente e mais rigoroso. Depois, o José Mourinho é filho de um antigo jogador e treinador de futebol, um profissional de talento indiscutível, que passou ao filho, com a ternura de pai atento e solícito, um grande amor pelo desporto, designadamente pelo futebol. Ora, como já o venho dizendo há 50 anos, “a prática é mais importante do que a teoria e a teoria só tem valor, se for a teoria de uma determinada prática”. Quero eu dizer que a teoria, por si só, não transforma, só o faz mediada pela prática. Sem a prática, não há transformação possível. O José Mourinho teve portanto a seu favor o que foi e é e… a sua circunstância. Mas, como também já o escrevi, “é o homem que se é que triunfa no treinador que se pode ser”. De facto, para mim, é no Mourinho, como ser humano, e portanto com qualidades e defeitos mas, com qualidades excepcionais que o fazem um dos melhores treinadores do mundo – é no Mourinho, como ser humano, que é preciso encontrar a chave da resolução desta questão pertinente: quem é o Doutor José Mourinho, como treinador de futebol?... Quero eu dizer a terminar: que, em circunstâncias favoráveis, o José Mourinho até pode ser o melhor treinador do mundo!"

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