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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Tarantini: jogador-estudante

"Depois de inteirar-me do conteúdo do livro, Tarantini: a minha causa (Oficina do Livro, 2017) da autoria do Tarantini, futebolista e capitão do Rio Ave, logo decidi escrever um texto-síntese sobre o que vinha de ler. Não cabe nas dimensões necessariamente menores desta breve crítica uma análise demorada dos temas que o Tarantini me suscitou. Contento-me, por isso, com esquissar aqueles que me parecem fundamentais. Comecemos pelo nome como é conhecido pelos “agentes do futebol” e pelo público fiel do futebol – Tarantini. “O meu nome de baptismo é Ricardo José Vaz Alves Monteiro, mas só a minha família é que me trata por Ricardo. Cedo me habituei ao nome artístico, que me foi dado por um ex-treinador. Tarantini era um defesa argentino da década de 70 do século XX, facilmente identificável pela sua cabeleira loura e encaracolada. Não foi esta a única alcunha que recebi, ao longo do meu percurso profissional. Mas foi a que vingou e é hoje uma imagem de marca. A 7 de Outubro de 2017 completei 34 anos. Aos 1,89 metros de altura juntam-se os 80 quilos de peso. E o meu contrato com o Rio Ave Futebol Clube é válido até Junho de 2018”. Dei a palavra ao próprio Tarantini, para ser ele a apresentar-se. Chegou o momento de emitir a minha primeira opinião. E, de facto, a primeira impressão que este livro me trouxe sintetizo assim: o seu autor é um homem de quentes afectos humanos e familiares, que o acompanham pela vida fora. E que o levam a questionar e a questionar-se, com extrema sensatez, com ética inatacável: “E a minha vida resume-se a escolhas feitas em prol de uma só questão – que pessoa quero ser neste mundo?” (p. 13). Já conheci e convivi com muitos jogadores e treinadores de futebol. Pela primeira vez, oiço a um “agente do futebol” esta interrogação (pela primeira vez, repito): “Que pessoa quero ser, neste mundo?”.
Não há jogos, há pessoas que jogam; não há fintas, há pessoas que fintam; não há remates, há pessoas que rematam. Se eu não compreender as pessoas, não entendo, nem os jogos, nem as fintas, nem os remates. O Ricardo José Vaz Alves Monteiro, que o público do futebol conhece por Tarantini, profissional de futebol, licenciado e mestre em Desporto pela Universidade da Beira Interior e doutorando da mesma Universidade, faz suas as palavras de Hans Jonas: “Age de tal modo que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana sobre a terra”. Mais importante do que um jogo de futebol é uma lágrima humana e o Tarantini, ou o Dr. Ricardo Monteiro, não se limitou a ser o jogador de futebol de muitos méritos, que hoje é, e desejou (deseja) ardentemente ser Homem, antes e para além do futebol. E, por isso, escreve: “Sabia que, estatisticamente, só mais de 4% dos jogadores de futebol conseguem alcançar os “três grandes” ? Imagina que a percentagem dos atletas com salário mais elevado é ainda mais reduzido? Esta é apenas uma pequena e demolidora amostra do retrato futebolístico português” (p. 77). E, pelo sortilégio da sua inteligência, entrou de juntar à sua absorvente vida de futebolista uma séria vida intelectual. “Recentemente, fui aceite para realizar o doutoramento na UBI (…). Chegar ao grau de doutoramento será, talvez, inédito no mundo do futebol. Vai ser uma luta ainda inimaginável. Mas é isso que me faz querer ir para a frente. Imagino o dia em que estarei trajado a rigor e em frente do júri. Mais do que isso, sinto que ainda estarei a jogar a um grande nível. Vai ser brutal!” (p. 81). O comodismo é o pendor natural da mediocridade. A ele conduz naturalmente os que se deixam enfeitiçar pelos aplausos frenéticos do facciosismo clubista, pelas palavras hipócritas do “conto do vigário”, pelos cantos de sereia de um certo sexo, de umas certas noitadas…
Tarantini soube escolher, entre a avidez imoderada das paixões que levam ao desastre, uma filosofia de vida que o torne mais autenticamente humano e portanto mais próximo da felicidade, que não é ausência de sofrimento (de quando em vez, o sofrimento é inevitável) mas possibilidade de uma vida que valha a pena viver, ou seja, que tenha sentido. No exemplo dos meus queridos e saudosos Pais e na leitura do Evangelho e de alguns filósofos, principalmente Descartes, Hegel, Marx, Nietzsche, Mounier, Bachelard, Habermas e Merleau-Ponty; porque, desde criança, sempre admirei embevecido a auréola refulgente do espectáculo desportivo, chegando mesmo a fazer amizade com alguns dos nomes maiores da história do nosso desporto – pude propor, em tese de doutoramento, um novo paradigma, a motricidade humana, onde cabem, como especialidades, o desporto, a dança, a ergonomia, a reabilitação, a motricidade infantil, etc. e tentando provar que fazia um “corte epistemológico”, em relação ao dualismo antropológico cartesiano, imperante na educação física e no desporto tradicionais. Para mim, de há 50 anos a esta parte, o humano é uma totalidade, é um sistema, ou seja, “uma unidade global organizada de inter-relações, entre elementos, acções ou indivíduos”. Na prática desportiva, portanto, seja ela qual for, o essencial é o ser humano, é o homem (ou mulher) e não a táctica, ou a técnica. No meu entender, o Tarantini nasce do Ricardo Monteiro, o homem está antes do jogador e, observado com atenção, o homem já anuncia o jogador. A honestidade, a coragem, a capacidade de sacrifício, a fidelidade a valores de forte carácter humanizante do futebolista Tarantini residem na pessoa, no cidadão Ricardo José Vaz Alves Monteiro. A sua cultura generosa e rigorosa, a sua coerência sem falhas, numa fraternidade imbatível para com o seu semelhante, o futebol aprimorou-as, de facto, mas ele já as tinha recebido do regaço de sua Mãe, do exemplo moral do seu Pai, da ternura das suas Irmãs.
Tarantini: a minha causa é um livro que deve ser lido pelos profissionais de futebol, ou aspirantes a profissionais de futebol. Dizendo da minha admiração por este livro, creio que muitos dos seus leitores se sentirão interpelados pelos meandros desta obra singular. Nela, um profissional de futebol (dos melhores que o nosso país tem, na linha média e como pensador do jogo) pode escrever, de alma em festa: “Ao longo de duas décadas de futebol profissional, sinto-me um afortunado, por nunca ter contraído nenhuma lesão que precipitasse o fim da minha carreira. Mas nunca deixo de pensar, no dia seguinte. Não sei se vou jogar mais um ou cinco anos. Aconteça o que acontecer, estou preparado para terminar a minha missão em campo e fazer uma transição tranquila” (p. 69). E, de consciência tranquila, acreditando no primado da cultura e da solidariedade, rejeitando a mediocridade e o sectarismo que medram no futebol português, continua: “Enquanto jogador profissional, contabilizo a participação em 469 jogos, sendo que as estatísticas gerais de desempenho ainda me atribuem 55 golos, 28 assistências e 35 mil minutos jogados. Em 2016, voltei a ter um ponto alto na minha carreira profissional, através do lançamento do projecto A Minha Causa: www.tarantini.pt. Um projecto para todos e ao serviço dos desportistas. Um exemplo que revela a possibilidade real de investir na carreira do futebolista, sem abdicar de todos os outros sonhos e evidenciando a importância da formação académica como factor de sustentabilidade de futuro. Esta é a minha causa! Qual é a tua?” (p. 86). Tarantini – um homem que sabe a definição e a função da prática desportiva e que portanto não desconhece que é preciso saber mais para servir melhor. Tarantini: um jogador-estudante, num magistério moral!"

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