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segunda-feira, 24 de julho de 2023

Continuo a não gostar dele. Parte II


"Com o meu último artigo em “A Bola”, intitulado “Eu não gosto do Cristiano Ronaldo”, magoei alguns espíritos puros e crentes entre os quais se incluem alguns dos meus bons amigos adoradores do CR. O veredicto de alguns dos meus amigos e de uma parte significativa da turbamulta que vê o futebol somente através das lentes da emoção é terminante – “ele é o maior da via Láctea e arredores”; “é o maior filantropo à face da terra”; “ele dá camisolas às criancinhas e tira selfies com elas”; “ele elevou o nome de Portugal aos píncaros da glória”; com ele o nosso país deixou a sua atávica vil tristeza e se projetou no mundo”; “que ele é o melhor jogador da bola do mundo e de todos os tempos”; “ele apresenta uma longevidade desportiva ímpar que denuncia os extremos cuidados que tem com o corpo e com a sua condição física”; “ele já tem 200 representações na seleção nacional”, etc. A partir da análise encomiástica destes ingénuos nefelibatas, constata-se que para aparecer outro como o craque da Madeira é forçoso que a evolução regrida até ao Big-bang e recomece tudo de novo. Do LUCA (Last Universal Common Ancestor) até ao ídolo de pés de barro da pérola do Atlântico.
Analisemos a situação com a sabedoria que nos vem quer dos livros quer da experiência de vida. Talvez eu consiga defender com elegância a minha tese sem magoar as emoções pró-CR de tanta gente. Lembrem-se que eu na introdução do supracitado artigo salientei de imediato que a minha análise não tocaria sequer a excelência desportiva do sujeito que é inquestionável.
Meus amigos! Isto de mitos cada um escolhe os que quer com o inalienável direito de liberdade de escolher. Também eu tenho os meus ídolos, que podem ser de pés de barro para outros, mas que para mim são referenciais da minha já longa existência. E não se pense que estou a falar dos ídolos meus coetâneos. Não senhor. Nesse particular sou bem democrático e toco várias eras dentro de espaço de tempo que já me calhou viver. Os meus ídolos não são melhores ou piores que os dos outros, só que são os meus e é isso que importa.
Aí vão alguns nomes que preencheram de beleza estética e sortilégio performativo a minha alma de desportista: Michael Jordan, Ronnie O’Sullivan, Fernando Pimenta, Manuel Campos, Emanuel Silva, José Ramalho, Roger Federer, Usain Bolt, Jesse Owens, Carlos Lopes, Joaquim Agostinho, Carlos Resende. Não estou certo que 50% dos portugueses saibam, sem falhar um, quem são estes heróis do Olimpo. Nas coisas do pontapé na “chincha” o meu panteão só tem lugar para dois extraterrestres – Eusébio e Maradona.
Em termos históricos, eu e todos os portugueses, devemos ter orgulho num campeão das nossas terras antes de sermos Portugal. De seu nome Caio Apuleio Diocles, nascido em Lamego (Lamecus em latim), auriga condutor de quadrigas que ganhou mais de um milhar de provas e auferiu, segundo Peter Struck, professor de Estudos Clássicos da Universidade de Pensilvânia, algo como 35.863.120 sestércios o que hoje daria qualquer coisa como 11,6 mil milhões de euros, o que o torna o atleta mais bem pago da história da humanidade deixando a léguas os mais bem pagos atletas da atualidade.
Há outros mitos desportivos, eu sei que há outros, mas estes são os meus e, como diz o povo, gostos não se discutem. Pode dar-se o caso de vocês querem torcer as minhas opções à força dos vossas. Ora tal atitude seria pouco democrática e completamente irracional.
Algumas vozes mais inquietas podem eventualmente vociferar contra a minha eventual misoginia: “Ouve lá ó esperto, não tens mulheres no teu panteão?”. No desporto, elevo ao grau de santidade as mulheres dos meus campeões que lhes devem ter aturado todas os pontuais desvarios que caracterizam todo o ser que é excecional. Quem luta para ser o melhor pode, muito naturalmente, perder as estribeiras emocionais afetando amigos, família e companheiros. Ali está a mulher para pacificar o leão destemperado. Já estou a ver um coro exaltado feminino a lançar-me os maiores impropérios e a classificar-me com todo o vernáculo da maravilhosa língua portuguesa. A mulher relegada para o papel de acalmar as fúrias dos campeões, como diria Nietzsche – “O homem nasceu para a guerra e a mulher para o descanso do guerreiro”. Calma, não é nada disso. Não sou misógino a esse ponto. Tenho uma pequenina costela de porco-machista, mas também tenho os meus ídolos femininos. Só que não pertencem ao desporto. É numa área em que mulheres de exceção são capazes de ombrear e suplementar muitas vezes os homens. Onde? perguntarão vocês muito justificadamente. Na investigação científica, é a resposta. Do imenso rol de mulheres brilhantes que elevam o nome de Portugal através da ciência aponto as que vingam em áreas mais ligadas aos meus interesses: Margarida Amaral, biologia molecular; Maria de Sousa (já jubilada), imunologia; Raquel Seruca (já falecida), oncologia. Estas três mulheres de excelência encabeçam uma plêiada de cientistas portuguesas, mais jovens e menos jovens, que dão de Portugal uma imagem de qualidade que nenhum pontapeador da bola alguma vez conseguirá. Meus senhores, para a maioria do povo, futebol é lazer mesmo que nele consiga dar vasão aos seus mais fulgurantes instintos hipotalâmicos. Para a maioria do nosso povo aquelas “artistas da ciência” são figuras completamente desconhecidas. Essa maioria, nem imagina, que é o labor destas mulheres e dos seus companheiros de luta científica, aqui e em todo o mundo, que lhes permite quando chegam em sofrimento ao hospital debelar total ou parcialmente as suas dores ou, nos casos letais, permite-lhes encarar o regresso à realidade quântica com o mínimo de sofrimento e o máximo de dignidade.
Portanto, quando me falam de ídolos e de mitos, temos de ser mais abrangentes e meter, nem que seja a martelo, quem, como diz Camões se vai da lei da morte libertando no seu labor ao serviço da ciência, isto é, da humanidade. Todas as mulheres cientistas têm um pouco de Madame Curie que morreu ao descobrir o oculto que a realidade comporta. Hoje, elas não morrem pela ciência, mas podem ver morrer a acalmia da sua vida familiar, pois, além de serem cientistas são muitas vezes mães, companheiras. Muitas sobrevivem em famílias estruturadas que as respeitam; outras, quando mergulham na ciência, veem a sua vida extra-ciência ser indelevelmente afetada. As primeiras são heroínas, as segundas são heroínas duas vezes.
Portanto meus amigos que importa o CR quando “outros valores mais altos se alevantam”.
Mas, o CR importa, só que importa numa dimensão que devemos saber relativizar. Não há valores absolutos, mas os valores relativos não são todos iguais. Uns são mais iguais que outros. Quem trabalha para o bem da humanidade sem os holofotes dos mass media está uns passos à frente no caminho da dignidade existencial que qualquer outro. Quando o CR morrer vai ter uma nuvem para viver afastada do centro do céu o que dá bem com a sua pulsão egoísta e egocêntrica. A Raquel Seruca, tenho a certeza, está hoje ao lado do braço direito de Deus a conversar com ele sobre o sofrimento humano provocado pelo cancro gástrico e a perguntar-lhe porque nos deixa Deus sofrer tanto. Ela lutou uma vida contra esse sofrimento e deverá estar a dizer ao pai dos céus que gostaria de ter ido por ali e por acolá nas linhas de investigação para ajudar a resolver um problema que Deus poderia resolver de uma penada. Mas, eu sei qual é a dele. Sem o sofrimento humano não emergiriam do berço humano estas forças transformadoras que nos fazem acreditar que ainda é possível acreditar no Homem.
Mas voltemos ao desporto. Devemos ver no mito o homem? Eu não consigo dissociar as duas expressões de mesmo ser. Por isso, nunca quero saber do homem nos mitos que me são referenciais. Não quero estragar o brilho da excelência desportiva com os fumos negros da mais pura humanidade. O mito deve ficar naquele sítio que Teilhard de Chardin denominou de noosfera. Fica lá em cima a pairar e nós cá em baixo para os admirarmos. “O mito é um nada que é tudo”, já sentia Fernando Pessoa. Mas, para ser um tudo há algumas condições que têm de ser respeitadas. Subir ao altar e lá ficar, escondendo bem escondidos os pés de barro.
Passo a dar um exemplo “exemplar” que se passou comigo. Como qualquer ser humano da minha geração que ama o desporto, a seleção de futebol do Brasil no campeonato do Mundo de 1982 levou-me ao céu da estética com um futebol de sonho para sonhadores. Com um meio campo ofensivo celestial, onde pontuavam verdadeiras lendas da bola – Toninho Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico, a seleção do Brasil foi de vitória em vitória até à derrota final nas meias-finais com a Itália. Só não chorei porque não sou de lágrima fácil e um homem que foi à guerra não chora.
Ficou-me na mente e na alma aquele futebol de sonho e a magia de Sócrates, o condutor divinal daquele futebol mágico. Mágico, mas irrealista. Os próprios italianos não compreendiam como uma seleção podia praticar um futebol tão alegre, bonito e irresponsável que beirava a soberba. Afirmavam eles muito lucidamente: - Nós viemos a Espanha para competir e os brasileiros para se exibir. Por isso, aconteceu a tragédia de Sarriá como ficou a ser conhecida para a história essa derrota dolorosa.
Tudo bem. De vez em quando lá ia eu rezar ao altar onde tinha colocado o Sócrates. Atenção, Sócrates o mago da bola e não o prisioneiro número 44. Até que o meu amigo e colega da faculdade Rodrigo Zacca, sabedor da minha admiração pelo homem do calcanhar mágico me ofereceu o livro de Tom Cardoso intitulado “Sócrates”. Aí o meu panteão mitológico sofreu duro revés. Ao conhecer o homem Sócrates de imediato o mito Sócrates se desvaneceu. Como posso admirar e respeitar um jogador que no final de um treino, com treino no dia seguinte, ia para os copos com os amigos e bebia 45 cervejas? Dizia ele: “Fizemos grandes farras ali, bebendo na piscina até de manhã”.
“O homem não é nada além daquilo que a educação faz dele” (Kant). Sócrates fugiu da lógica desse aforismo. Teve educação (tirou o curso de Medicina), mas dela não captou o essencial que é transformar a educação em comportamentos elevados e responsáveis. A vida boémia em que mergulhou era incompatível quer com os estudos de medicina quer com as exigências profissionais do futebol de alta competição. O tabaco e o álcool talvez tenham impossibilitado uma carreira muitíssimo mais brilhante que a que teve.
Ao conhecer o homem morreu o mito. A culpa é do Zacca.
Mas permanecem indeléveis aqueles mitos que venero e dos quais não conheço, nem quero conhecer a dimensão humana. Todos sabem quem são Michael Jordan, Ronnie O’Sullivan, Fernando Pimenta, Emanuel Silva, Roger Federer, Usain Bolt, Jesse Owens, Carlos Lopes e Joaquim Agostinho, mas poucos conhecerão as sagas de Manuel Campos, José Ramalho, Jesse Owen e Carlos Resende.
Jesse Owens, o campeão que vergou Hitler e abanou a sua fé na superioridade da raça ariana.
José Ramalho, o melhor maratonista mundial da canoagem de todos os tempos. Aos 42 anos, depois de uma carreira com vários títulos de campeão do mundo e europeu continua a ser dos melhores e a elevar o desporto à dimensão de desígnio existencial.
Carlos Resende, o jogador que demonstrou que o andebol português também podia. O melhor jogador português de todos os tempos e um dos melhores do mundo.
Agora Manuel Campos. Pouquíssimos saberão quem é o Joca. É, nem mais nem menos, aquele campeão que deu à ginástica a carta de alforria. Foi o primeiro ginasta português a competir em pé de igualdade com os grandes campeões internacionais. Mas como? Com uma vontade férrea que nunca se deixou vergar pelo infortúnio. As lesões foram muitas pois o risco na ginástica de alta competição é grande. Nunca esmoreceu. Cada queda e cada lesão eram a motivação intrínseca para a recuperação e a retoma do sonho de chegar o mais longe possível. Onde chegou? À participação nos Jogos Olímpicos onde conseguiu a melhor classificação de todos os tempos de um ginasta português. Cair e levantar é o lema do verdadeiro campeão. Ser grande e manter a humildade de um principiante, só os grandes deuses do Olimpo o conseguem.
O homem da Madeira nunca conseguiu soletrar a palavra humildade. Que fique lá com o seu feitio."

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