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terça-feira, 1 de março de 2022

Futebol estruturado: teoria e prática


"Cada vez mais me convenço de que as escolhas dos jogadores definem tanto o pensamento de um treinador como o modelo de jogo que persegue. E que é muitas vezes na opção pelas individualidades que se faz o teste do algodão. No discurso todos manifestam ambição, vontade de repartir jogo e protagonismo, assumir iniciativa. Como nas palavras todos afirmam valorizar o talento, a qualidade com bola, a criatividade que acrescenta o inesperado. A verdade é que à vontade verbalizada de audácia sucede com frequência a concretização de abordagens tímidas e que a preferência propalada por criativos desemboca depressa em atletas sobretudo robustos e burocratas. Como dizia um velho sábio “a teoria na prática é outra coisa".
O Sporting entra em défice definitivo de criatividade quando lhe faltam Sarabia e Pote, sobretudo em simultâneo, como foi o caso do jogo na Madeira. Rúben Amorim ainda lançou Daniel Bragança, o médio que vê mais jogo com bola, mas a verdade é que, no caminho tático que definiu, Bragança só parece caber, pelo menos de início, quando falta algum dos mais talentosos à frente, com quem o seu jogar liga(ria) melhor. Não está em causa a opção no jogo com o Marítimo, natural e correta perante as ausências. Acontece que, com a estrutura sempre repetida, de três centrais e dois alas, sobram apenas dois lugares no miolo, quase dogmaticamente destinados a médios pressionantes e de grande disponibilidade física, o que faz com que Bragança parta da quarta posição entre os candidatos a essas duas vagas, após Palhinha, Matheus e Ugarte, e só raramente acrescente pausa e critério, que é o que faz mais falta ao futebol competente dos leões.
Antes do jogo frente ao City, quase todos agarraram na metáfora da primária e da universidade – jornalisticamente mais apetecível –, mas foi no resto da frase que Amorim deu mais uma prova de humildade incomum no futebol e sobretudo de inteligência, quando se afirmou, autocriticamente, um treinador muito estruturado, por comparação com a flexibilidade única do jogar de Guardiola. O diagnóstico teórico está correto, falta-lhe o ganho na prática. Trata-se, literalmente, de desestruturar, seja por via de posicionamentos diferentes ou de jogadores distintos. Ou ambos. Porque não é o treinador, é o jogar do Sporting que surge ainda muito estruturado, além de cada vez mais identificado pelos adversários. Se não mexer no sistema – a estrutura com dinâmica – dificilmente encontrará espaço para mais uma unidade ofensiva. Se mexer, pode perder em robustez defensiva o que ganhará em criatividade adiante.
Um pintor de paredes, mesmo se competente na arte, não arrisca pintar quadros a óleo. Do mesmo modo, só um jogador talento pode acrescentar algo inacessível a um profissional das rotinas. Rúben Amorim também identificou, na análise feita aos homens do City, a dificuldade em “tapar-lhes qualquer ideia, porque eles mudam”. Mudam precisamente por serem jogadores de inteligência e intuição e é com futebolistas desses que se conseguem equipas menos estruturadas e previsíveis. E não, não os há só a preços exorbitantes, que a qualquer escala se pode privilegiar um jogar de iniciativa e agrupar mais ou menos o talento disponível. Vejo o Marítimo parar o Sporting com a coragem tática de juntar no onze, e em simultâneo – o que só acontece desde que Vasco Seabra chegou –, Beltrame, Guitane e Xadas, além de Vidigal e Alipour. Do mesmo modo assisto a nova e eloquente prova de qualidade do Gil Vicente, mesmo com 10 quase o tempo todo no Dragão, a jogar, após a expulsão do médio defensivo, com dois criativos no meio, Pedrinho e Fujimoto, sem abdicar de qualquer dos atacantes, Léautey, Samuel Lino e Fran Navarro. Quando uma prática corajosa, que envolve treino e escolha dos jogadores, respeita uma teoria bem idealizada, o sucesso fica mais próximo. E não há ponta de romantismo nisto, que o Gil é quinto e o Marítimo já se colocou a um ponto apenas do sexto lugar. E o Paços de Ferreira, onde também já tanto mudou e melhorou, vem logo a seguir."

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