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domingo, 24 de março de 2019

Moçambique, Eusébio e os três tempos do verbo chorar

"Quem nunca jogou com uma bola gaga que atire a primeira pedra. Não há boa infância sem bola coxa de matrecos

Chorar
1. É impossível, nestes dias, não lembrar a extraordinária resposta de Eusébio, no dia em que morreu Amália. Uma radio telefonou-lhe para casa a perguntar o que sentia, o que queria dizer naquele momento, e ele respondeu:
- Estive a chorar, estou a chorar, vou continuar a chorar.
Uma síntese impressionante. No passado, agora e depois de amanhã: chorar.
Também agora com o ciclone que destruiu a Beira. Como se uma tragédia fosse tão grande que deixasse de ter data, ficasse eterna como eternos são os deuses e os diabos casmurros. Não foi hoje esta tragédia: foi sempre; não há o depois das grandes calamidades.
A água como elemento que dá a vida, que sempre foi o sinal da sobrevivência e do desenvolvimento, mostra, por vezes, tragicamente, terrivelmente, a sua parte de diabo, o outro lado. Como se a água subitamente dissesse: não estou aqui apenas para matar a sede, mas para passar por cima de tudo o que é humano, para arrasar.

O lugar «que quase já não há»
2. Mia Couto, belo amigo e companheiro, a quem dou um abraço gigante, bem como a Agualusa, cada vez mais ligado a Moçambique, dois queridos companheiros. Mia nasceu na Beira e disse, há poucos dias, comentando a calamidade, que pensava escrever um livro sobre a sua infância e por isso mesmo regressar à Beira onde nasceu e sentir «o espírito do lugar» mas agora, dizem-lhe, «que quase já não há lugar».
Como sentir o espírito do lugar quando o solo já não está lá, quando até os cheiros, aquilo que parece não ocupar espaço nem ter forma, mudaram?

Matraquilhos, os prazeres da infância
3. Mas quando a desgraça aparece, tentemos salvar com matéria concreta e urgente e depois ainda com histórias encantatórias. Em Moçambique, as histórias não salvam, a memória também não - mas em parte queremos ser servos para manter a memória e para continuarmos a contar histórias.
Penso numa história de Mia Couto, do livro Cronicando, cuja base é o mui nobre jogo de matraquilhos. O narrador da história pertence ao grupo dos imóveis: «Nós éramos os do muro, sentadiços. Os outros corriam os futebóis, dispensavam suores. Enquanto nós, não».
Os sentadiços, uma acertada expressão. Hoje, diga-se, há cada vez mais sentadiços ou sentaduços. Por vezes jogam apenas 22 e há milhões a ver. Sentaduços, espécie animal que se multiplicou em poucas décadas.
Os sentadiços do conto de Mia ficam então fora do suor mas também da convivência feminina, afastados dessas raparigas que passavam e que «com suas batas brancas, pareciam aprendizes de graças».
Enquanto dos atletas ficavam com as elegantes garças, aos sentadiços do muro restava apenas ficar com os «olhos trincando as sombras femeameninas». Ficavam com as sombras, portanto.
Mia Couto conta ainda o fascínio que era um miúdo colocar uma moeda na mesa de matraquilhos e saírem de lá «nove bolinhas, já tão gastas que coxeavam em cada volta de seus épicos percursos». Estas bolas antigas, coxas, rombas, que já não rolam, que andam uns centímetros e param, aqui e ali, como que cansadas ou mancas por completo da sua circunferência. Como dão saudades! Quem nunca jogou com uma bola gaga que atire a primeira pedra. Não há boa infância sem bola coxa de matrecos.
Como não recordar, então, com alegria estes jogos da infância? Em Moçambique, em Portugal, um pouco por todo o lado.
Foram muitas destas brincadeiras de infância que agora foram derrubadas.

A falta que faz
4. Numa próxima crónica falarei mais desta história de Mia Couto, que não é assim tão doce como parece.
E tenho a certeza de que se perguntassem a Eusébio nestes dias o que ele estava a sentir, ele diria o que é necessário:
- Estive chorar, estou a chorar, vou continuar a chorar.
E sim, o futebol é importante, mas nunca Eusébio fez tanta falta como nestes dias trágicos."

Gonçalo M. Tavares, in A Bola

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