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sexta-feira, 19 de maio de 2017

Aprender a perder. A função social do desporto

"O desporto joga-se para aprender a perder. Os desportos não existem para aprender a ganhar. Ganhar, chegar a ganhar, não é fácil. Porém, aceitar a vitória é fácil, é a satisfação pelo trabalho feito, o divertimento por ter sido beneficiado pela sorte, o resultado de um trabalho de equipa bem sucedido. Agora, perder... Depois de ter tido um trabalho equivalente ao do vencedor, a infelicidade de não ter sido bafejado pela sorte, o resultado de um trabalho de equipa que aqui e ali não correu como se havia treinado, como se havia desejado. Isto, se pensarmos em termos de dois opositores em equilíbrio. Se o vencedor é o mais fraco, é ainda mais duro, mais difícil de aceitar. Perder nunca é fácil mas é para isso que o desporto existe. Nos campos de jogos ingleses, estes princípios conduzem o treino, o jogo, seja lá em que desportos se apliquem com determinação, com o apoio dos pais, da comunidade.
É por isso que o desporto moderno existe na nossa sociedade. E é por isso que não é possível encontrá-lo numa outra sociedade qualquer na história, com as características que conhecemos e as formas em que podemos reconhecê-lo na sociedade em que vivemos, a sociedade em que tanto os desportos como nós, fazemos parte. Algo em comum, portanto. Os desportos são uma adaptação dos jogos populares que, no jogo jogado entre os adolescentes foram transformados nos campos relvados e, também, de terra batida, das escolas inglesas. Isto é, a transformação registada nos jogos, que se tornavam mais organizados, desenvolve-se no seio de centros de educação onde, para alguns dos responsáveis, não passava despercebido o interesse dos miúdos pelos jogos. Esses adolescentes, deixavam de sentir interesse nas escaramuças jogadas, ou após os jogos, e concentravam-se no respeito pelas regras. A energia dedicada ao jogo, à organização dos jogos, do jogo em si, é ajustado a formas de fazer que, a partir de certa altura, são consideradas por eles próprios como as mais interessantes e ajustadas, contra outras formas rejeitadas, deixadas para trás, ou de lado (daí a cisão entre o futebol e o râguebi).
Ao mesmo tempo, os directores desses estabelecimentos de ensino, mais atentos à dedicação dos mais jovens aos jogos, rapazes que se mantinham empenhados nos jogos e ausentes das salas de aula mas eram incansáveis nos esforços persistentes em jogar e em vencer, sugeriam uma ou outra ideia. Por exemplo, o limite do espaço, a circunscrição dos jogos em terrenos rectangulares. No processo, ganhar era invariavelmente fantástico, perder era sempre difícil. Mas, precisamente, era nessa dificuldade que se estruturava o carácter, a capacidade de enfrentar a frustração, a vergonha, a raiva de haver perdido, o riso de si mesmo, de não ser o vencedor. A transformação dos jogos em desportos, processo lento desenvolvido desde os fins do século dezoito, em Inglaterra, é apontada por Elias e Dunning como um elemento de civilização. A palavra civilização, corrente, é demasiadas vezes usadas para separar, uns seriam civilizados, outros seriam bárbaros. Ou uns seriam civilizados, outros, fundamentalistas. Não é bem essa a questão. No essencial, a palavra civilização corresponde ao interesse colectivo aplicado em formas vividas de tornar civil, capaz de viver na civitas – de viver com os outros, em sociedade.
Verificamos assim que o tempo em que a palavra civilização começa a ser utilizada pelas camadas mais cultas da sociedade, é também o tempo em que dos campos (country side) onde a aristocracia inglesa vivia durante todo o ano, com algumas deslocações breves à capital, Londres, os jogos se deslocam para o universo, as vedações e os limites das escolas secundárias (as Public Schools). E enquanto esses jogos e arranjos se estruturavam, as competições deixavam de se circunscrever a duas equipas, passavam a ser realizadas entre duas escolas, entre duas regiões, entre duas nações. Em síntese, civilização designa formas de agir que são destacadas pela capacidade de sobrepôr a razão à emoção. De aceder a um estado em que é possível colocar a inteligência e as acções ao serviço do colectivo sobrepondo-se, esta forma de pensar às maneiras dominadas pelas paixões que semeiam as desgraças, as guerras, a destruição e, em última análise, a morte. Foi este o processo que, no âmbito do estilo de vida da aristocracia inglesa, deixou os campos e estendeu-se às cidades. Criou mais regras, outras regras e estendeu essas maneiras de jogar – de viver em comum com o outro – a todo o país. A mudança das coisas, das maneiras de jogar neste caso dos desportos, corresponde a maneiras de pensar. Materializava, concretizava e transmitia maneiras de pensar racionais, razoáveis, lógicas e, entenda-se, subordinadas à razão. Nos jogos transformados em desportos passava e desenvolvia-se uma outra forma de ver o mundo, de ser o mundo. Um mundo onde as regras progressivamente deveriam ser iguais para todos. O desporto moderno foi integrado em toda a Europa, em todo o mundo Ocidental, integra o mundo inteiro – nos campeonatos regionais, distritais, nacionais, europeus, mundiais, olímpicos.
Então, não foi uma coincidência que a experiência, a necessidade e o desenvolvimento da civilização – que é acompanhado pela adopção de regras comuns a todos os níveis e, também, nos desportos – se tenha manifestado e integrado na nossa sociedade desde os fins de 1700 e que continue a ser sentida e compreendida como uma necessidade colectiva. O desporto moderno é o meio mais poderoso de civilização que a nossa sociedade ocidental conhece. O desporto moderno é o meio privilegiado de comunicação com o mundo. De chegar mais perto do outro, dos outros, de todos. Há um conjunto de regras, de técnicas, de homens e de mulheres, de instituições e de organizações nacionais, internacionais, mundiais, que estruturam as relações entre uns e outros e reforçam as regras aceites por todos de uma forma de estar e de agir que caracteriza, justamente, o mundo da civilização, o mundo que gostamos de pensar é civilizado.
Sendo assim, e não é fácil o que se conseguiu até aqui quando pensamos no caminho percorrido, o desporto moderno tem uma função social extraordinária. O desporto civiliza. No momento em que se aprendem as regras, quando se aprende a respeitar as regras de um mero jogo, um mero jogo que se joga como se fosse a sério, ainda que se saiba que se trata apenas de um jogo, entramos no jogo maior que é o de um jogo com regras comuns e onde todos partilhamos o final. Sendo assim, o mais importante é o jogo, não o resultado. Mas se o resultado é importante e decisivo, como sabemos que é no desporto profissional, e no desporto de alta competição, conhecer e aplicar as regras, jogar dentro das regras não é tudo, nem é o principal. O mais importante é que, através do jogo, não só aprendemos o mundo da vida como aprendemos a ser. E precisamos de aprender a ser, ninguém nasce perfeito nem pronto. Ainda não! É difícil aprender a ser quando ganhamos sempre, todos os jogos, sempre que jogamos. Daí que seja na derrota que crescemos, que nos tornamos gente. É uma pena que não se possa crescer na vitória permanente, que o sofrimento, a dificuldade sejam condição para se pensar e ser capaz de aceitar a vitória de uma forma civilizada e isso só se aprende quando perdemos. Perdemos amigos, amores, parentes. E o jogo. Porém, jogos há muitos – e estão aí para aprendermos aquilo que é o mais difícil, para alguns impossível. Não entendem. Aceitar que não somos perfeitos, infalíveis. Isso não é fácil. Mas é o que é. Por isso o desporto é tão fascinante. Cria em nós a possibilidade, talvez a ilusão, talvez a oportunidade, de tentar de novo, continuar. O grande jogo da vida, de viver com os outros, de viver os outros, de ser os outros em nós, de sermos nós nos outros.
Um exemplo. Cada semana, a mesma situação. A tensão paira no ar, em cada jogo fica-se com os nervos em franja. Os jogadores atiram-se à bola, vigiam o campo, correm para um lado e para o outro, dominam, são dominados, lutam até dominarem de novo, avançam no terreno e atiram ou aproximam-se da baliza. Na beira do rectângulo, o treinador gesticula, concentra-se em cada movimento, na falta de progressão, no terreno, no jogo. A equipa técnica segue o jogo, em sofrimento. No fim, a vitória, justifica tudo. Depois de ter ganho tudo, quase tudo no futebol, José Mourinho confrontou-se com a derrota a vários níveis, a tal ponto que eu pensava, como é possível aguentar tanta pressão. Como é possível aguentar a queda, ainda por cima com a noção de que nos tramaram? E que há quem se aproveite disso num estilo fartar vilanagem? Por uns tempos, Mourinho afastou-se. Retirou-se para se recompor. Física e psicologicamente. Passou pelo ginásio. Regressou melhor. Fisicamente, bem visível a brilhante forma. Mentalmente, muitíssimo mais forte. Como treinador e como pessoa, bem melhor. Mais generoso, mais descontraído, cada vez mais atento ao que conta. No Manchester United, o seu sonho, dá mais do que alguma vez deu. Entrega-se. Durante a sua ascenção, os estudantes de treino apareciam em maior número, animados, confiantes, sorridentes. Como se tornar-se treinador fosse sinónimo de tornar-se um novo Mourinho. Quando as coisas começaram a correr mal, os debates eram acérrimos. A culpa é dela...Passado o temporal, a calma retoma o trabalho, eles alteraram a sua forma de estar. Nem dão por ela. Estão hoje mais sérios, mais responsáveis, mais maduros. A prenderam que nem com o Number One as coisas são sempre a ganhar. E o perder dói que se farta! Sob o meu olhar, que fornada de bons treinadores em formação. O estremeção abanou-nos a todos, fez-nos sofrer por bem, fez-nos crescer um pouco a todos que acompanhávamos a tentativa de destruição do invencível – jovem, good looking, succesful, do sul. É demais e há quem não aguente o sucesso dos outros. Também não percebem e precisam de crescer, se conseguirem. Não devia ser preciso, mas dificilmente alteramos a matéria que faz de nós humanos. 
Termino estas linhas quando são 24:00 de 7 de Maio de 2017, 00.01 de 8 de Maio. O Porto empatou com o Marítimo, o Sporting perdeu com o Belenenses, o Rio Ave perdeu com o Benfica. C’est ça! C’est la vie!
(...)"

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