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segunda-feira, 16 de abril de 2018

O Desporto: educação e cultura

"Li o Editorial, no JL (Jornal de Letras, Artes e Ideias), de 28/3 a 10/4 do ano corrente. E aqui o aplaudo de modo a acirrar velhas antipatias por algumas das minhas ideias. Arrisco dizer com o Dr. José Carlos de Vasconcelos (o editorialista em questão) que em nenhum país democrático e civilizado qualquer rotineira iniciativa do presidente ou do treinador principal de um clube de futebol, ou qualquer jogo de futebol, merecem tamanha e tão comentada cobertura nas televisões, nas rádios e nos jornais, como em Portugal, e propõe depois (um ato de justiça que é também um imperativo da inteligência) que todos os grandes escritores portugueses, juntos, tivessem tanto tempo de antena como um treinador de futebol de grande visibilidade. No livro Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa (Planeta, Lisboa, 2015) Miguel Real, um exemplo de trabalho aturado e probo na cultura portuguesa, sublinha no livro de António Pinto Ribeiro, Ser Feliz É Imoral, as qualidades que, desde a década de 90, tornaram os portugueses mais felizes, incluindo mesmo algumas franjas que se aproximam das mais carecidas da população: o consumismo, o hedonismo, a espectacularidade, a precarização, a emergência social e sociológica da mulher, a reprodução e os papeis sexuais. E assim, “consolidada a educação científica na escola pública, consolidada a abertura às programações estéticas europeia e americanas, consolidada uma visão profana no mundo, as novas gerações possuem uma mentalidade cultural que assenta: mais na contingência que na necessidade; mais na provisoriedade do que no definitivo; mais na imanência material do que na transcendência espiritual; mais na conquista do prazer do que na obediência ao dever moral; mais na fragmentaridade das vivências sociais do que na unidade de uma consciência social plena” (p. 128).
N’ O Crepúsculo do Dever (D. Quixote, 4ª. Edição, 2010) Gilles Lipovetsky refere com discernimento, que a ginástica, a educação física e o desporto, tanto no século XIX como na primeira metade do século XX, eram práticas corporais de indiscutível exigência moral. “Arnold e depois os coubertinianos verão no desporto uma escola de moralidade, que cultiva o gosto pela luta, o sentido do esforço, a solidariedade, a abnegação. Até meados do século, a referência às virtudes será central nas representações do desporto: se deve ser louvado e encorajado é porque desenvolve as mais elevadas qualidades morais. As correntes do pensamento mais idealistas partilharão a ideia da saúde e do renascimento moral, através do desporto. Bergson admira-o por favorecer a auto-confiança. Brasillac e Drieu exaltam-no como instrumento de aprendizagem do dever, do espírito de equipa, do vigor do corpo, todas estas virtudes desprezadas pela sociedade burguesa” (p. 129). Mas continua Gilles Lipovetsky: “Em apenas algumas décadas, este universo idealista desmoronou-se. O desporto libertou-se do lirismo das virtudes, acertou o passo com a lógica pós-moralista, narcísica e espectacular” (p. 131). E remata o filósofo: “O que faz mover multidões não é o desporto enquanto tal, é o desporto de alto nível, os grandes encontros nacionais e internacionais, onde a prestação e a dramatização atingem o ponto culminante” (p. 134). Nietzsche por várias vezes lembrou que o ser humano é um animal imperfeito, inacabado, carente das condições que asseguram a sobrevivência dos outros animais. Teilhard de Chardin, com a sua lei da complexidade-consciência, procura ensinar-nos que a vida é a expressão máxima da matéria, como a cultura é a expressão máxima da vida. Como o Desporto, para mim, no movimento da transcendência, pode representar uma das expressões máximas da cultura…
O Desporto, o verdadeiro Desporto, encontra-se em relação de dependência da Cultura, digamos mesmo, com palavras do Padre Manuel Antunes: é o reflexo e o projecto de uma cultura. Reflexo? Porque do Desporto emerge um legado admirável de normas, de valores, de ideais, de hábitos, de ritos, que civilizam, que humanizam. Projecto? Porque, pelo movimento intencional da transcendência, a pessoa humana (e o desportista que outra coisa não é que uma pessoa humana) aprende que, sempre e em todas as circunstâncias, é uma tarefa por realizar, é uma transcendência por completar, por outras palavras: nenhuma realização sua pode considerar-se alguma vez terminada. E não só transcendência física, porque o sentido do desporto, como o sentido da matéria, como o sentido da vida, aponta em direcção ao ser humano, como este sente o apelo inapagável do Absoluto. A lógica da “sociedade de mercado” resume-se a pouco: o “progresso pelo progresso”, o “crescimento pelo crescimento”, que se “desenvolvem” por uma competição que não tem outros valores senão os do economicismo reinante. E, daí, tantas formas de violência, entre os homens e as nações e também na agressão contínua contra a natureza. Um ponto ainda a salientar: na CMH, os valores não preexistem de modo nenhum ao movimento intencional, porque é o movimento que lhes confere a sua existência. Podemos invocar, neste passo, o “círculo hermenêutico” que assim se enuncia: crer para compreender e compreender para crer. Quem crê compreende e, porque compreende, acredita ainda mais. O “círculo hermenêutico” não se encontra monopolizado pela fé religiosa. Conheço, com alguma (ou muita) evidência o fenómeno da “crença”, em clubes de futebol, para deixá-la, unicamente, no espaço religioso. Fui, durante quatro anos, presidente da Assembleia Geral do C.F. ”Os Belenenses” e, durante perto de 30 anos, vivi o Clube da Cruz de Cristo, em situações e cargos diversos. E, há 79 anos, frequento habitualmente os estádios onde o futebol se pratica…
Há necessidade de um novo crescimento, de um novo progresso do desporto, designadamente da alta competição desportiva. Para tanto, havemos de reencontrar as dimensões humanas perdidas numa competição sem os valores fundamentais ao desenvolvimento humano. Demais, o capitalismo não pretende outra coisa no ser humano senão a sua força de trabalho, ou seja, não nos quer inteiros, mas só a nossa capacidade de rendimento económico. Perdeu-se assim a visão do ser humano como portador de valores de solidariedade, de generosidade, de criatividade, de ternura, de compaixão, de cuidado. “Daí se evidencia que o dado originário não é o logos, a razão e as estruturas da compreensão, mas o pathos, o sentimento, a capacidade de simpatia e empatia, a dedicação, o cuidado e a comunhão com o diferente. Tudo começa com o sentimento. É o sentimento que nos faz sensíveis ao que está à nossa volta, que nos faz gostar ou desgostar” (Leonardo Boff, Saber Cuidar, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 2007, pp. 99/100). O dualismo antropológico racionalista, dando lugar de realce à Razão, gerou o homem unidimensional, ao desprezar o que, no ser humano, é corpo e sentimento e desejo e amor e poesia. No Desporto, o racionalismo reduz a realidade a números, a cifrões, a equações aritméticas, ao infinito quantitativo. E tudo isto sem referência a um novo projecto de sociedade, a um novo projecto de humanidade. A “Origem das Espécies”, com o seu struggle for life não pode explicar o homem todo. Desta “luta pela vida”, onde parece radicar a competição capitalista, não pode nascer um novo humanismo. E não deverá ser o Desporto um novo humanismo, para poder integrar-se na Educação e na Cultura, que é preciso criar? Ora, se assim é, se a sociedade de mercado provocou uma tormentosa crise de valores, o desporto que a serve fica na dependência de uma certa ideia de progresso onde a eminente dignidade da pessoa humana não é o objectivo primeiro. O objectivo primeiro é outro, é o lucro. E um lucro que nem sempre se confunde com disciplina financeira, mas com outros motivos que não educam, nem fazem do Desporto, no plano ético e político, um espaço privilegiado de Cultura."

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