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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Violência (no desporto ou fora dele): da inaptidão pessoal à validação social

"O inicio de Fevereiro trouxe, novamente, para o grande palco dos media, o tema da violência e da agressividade no Desporto - muito em particular no futebol (mais recentemente, em direcção a um atleta em particular), mas afinal um tema da sociedade em geral.
Seja qual for o contexto a considerar, na realidade estamos sempre a falar de um exercício de poder e dominância – alguém que de forma manifesta ou subliminar (entenda-se a “agressividade passiva” que passa nas “entrelinhas” mas cumpre o propósito de atingir alguém, muito frequentemente, num exercício de manipulação psicológica) procura impactar o comportamento do outro na forma de subjugação (a curto, médio ou longo prazo – aqui, se estivermos a falar na forma dissimulada que a manipulação pode assumir).
Curiosamente, o impulso agressivo, tal como podemos encontrar nos manuais mais antigos da Psicologia enquanto disciplina científica, cumpre o propósito de garantir a sobrevivência das espécies – com ele se molda o meio, se mata para comer e se adapta para fazer face às diferentes adversidades do contexto.
Por esta razão, não é de facto algo que se pretenda “banir”, mas sim que se aprenda a dirigir de forma construtiva para propósitos concretos, através de um adequado controlo (que pode e deve ser aprendido) dos impulsos ditos “agressivos”. Daqui se pode compreender que, confundir este tipo de expressão com a agressividade e violência gratuita, é o maior dos erros.

A Inaptidão Pessoal
Acontece que cada vez mais se observa um afastamento dos nossos instintos mais primários, onde, tal como se pode observar nos animais ditos “irracionais”, se faz uso do impulso agressivo como um “meio” de sobrevivência (portanto, um meio para um fim específico e, em boa verdade, legítimo), passando a usá-lo como um “fim” em si próprio, que se traduz na agressividade e violência gratuita, que só cabe existir em quem, acima de tudo, acaba por mascarar a enorme fragilidade que sente (sob a forma de auto-estima deficitária e/ou uma noção de competência pessoal, nas diferentes áreas de vida, baixíssima) numa espécie de “coreografia” de dominância – afinal, a única que conhece.
Os comportamentos de violência, de agressividade e de falta de respeito pelos direitos dos outros (humanos ou animais) encontram-se, desta forma, indubitavelmente associados, desde os tempos mais ancestrais, ao exercício de alguém que é deficitário na sua capacidade de regular as emoções que sente, muitas vezes sob a forma de Medo e encontra, por tudo isto, numa sociedade que privilegia o conhecimento técnico e tecnológico, a anestesia ou a hiperadrenalina como os únicos “estados emocionais” (que não o são) reconhecidos, terreno fértil para se alastrar rapidamente, como de se um incêndio de verão se tratasse.

Validação Social - Ferramenta de Aprendizagem
Em Portugal, desde há já alguns anos que este tipo de tema vem à praça pública sob forma de debates ou tentativas de medidas de coação que, em boa verdade, se percebe muito rapidamente que não estão a cumprir a sua função – se assim fosse, dificilmente veríamos dois fantoches “enforcados” numa ponte (em clara alusão à equipa de arbitragem e equipa adversária) antes de um grande dérbi nacional, como sucedeu recentemente.
Fenómenos destes e outros (como lançar tochas) acontecem por duas razões:
1) porque podem acontecer, ou seja as medidas de coação não estão a ser eficientes e...
2) porque recolhem validação social seja entre pares ou até nos media que garantiram tempo de antena (e de promoção) por tempo suficiente, para que daqui possa resultar uma noção interna distorcida de “dever cumprido”.
Compreender, contudo, a natureza destes comportamentos (por exemplo, os agora identificados), não é tarefa fácil pois, na realidade, este tipo de “produto” que a sociedade produz, resulta de uma ação global, onde todos temos um papel e uma cota alargada de responsabilidade – seja por participação, seja por conivência, ao não falar e não actuar na direcção contrária.
Alguns exemplos apenas:
- desde a criança que levanta a mão à avó ou mãe e o meio reage com complacência;
- à risota que surge quando essa mesma criança puxa a cauda ao gato ou pontapeia o cão, num claro exercício de instrumentalização de um ser vivo sem empatia pelo sofrimento que possa estar a causar, e a família reage com um “estava a brincar”;
- ou quando responde aos pais ou professores e a consequência surge com um “coitadinho, está com sono”;
- quando se escolhe educar para a competitividade com outro e não consigo próprio (no desporto, na escola com os tão afamados “quadros de honra”);
- quando um colega de turma está a ser vítima de bullying e é mais “cool” ficar do lado do agressor que até é um(a) tipo(a) que diz umas piadas com graça;
- quando o percurso académico valoriza apenas competências cognitivas e não de inteligência emocional, empatia, solidariedade e comunidade;
- quando numa mesa entre amigos alguém se torna mais abusivo a comunicar e o grupo não regula de imediato esse comportamento não permitindo a sua expressão achando apenas que “ele fica assim com uns copos”;
- quando assumimos ainda que “entre marido e mulher não se mete a colher” e, perante a evidência de comportamentos abusivos, escolhemos “fingir não ver”;
- quando nas empresas o director que leva o prémio mais “chorudo” para casa é o que reúne a sua equipa em exercícios de gritaria e humilhação sem fim ou quando pretendemos que colaborem entre si e saibam trabalhar em equipa mas as avaliações de desempenho reflectem apenas o comportamento individual;
- quando observamos nas redes sociais figuras públicas (via media ou rede digital) incitarem o ódio e a agressividade desresponsabilizando-se de todo (ou não tendo a mínima noção) do impacto que possam ter em quem os segue;
- quando se assiste, em prime time, a debates televisivos onde quem grita mais é quem tem mais “likes” (da estação e da audiência) ou, em última análise, até debates na Assembleia onde a falta de respeito impera em muitas apresentações que, por exemplo, deveriam ser imediatamente cessadas. 
Enfim... um sem número de exemplos, todos eles à nossa volta diariamente onde, não intervir é ser conivente e tornar aceitável cada um deles.
Não intervir é, por esta razão, Validar.

Soluções?
Em boa verdade, com os meios tecnológicos necessários, que possibilitem um maior controlo sobre o comportamento das massas, é possível que a violência nos recintos desportivos possa vir a ser correctamente sancionada e ver diminuída a sua expressão, tal como se observou com as medidas implementadas face ao hooliganismo em Inglaterra – para tal, importa que clubes, federações, forças policiais e os diferentes organismos do estado possam reunir à mesma mesa (como o têm feito, talvez de uma forma ainda um pouco "tímida" e pouco colaborativa), no sentido de encontrar medidas verdadeiramente eficientes, do ponto de vista da regulação.
Mas este é um fenómeno muito maior. Extravasa o desporto, ou melhor, encontra-se enraizado na cultura e sociedade em geral, sendo o desporto apenas mais um campo da sua manifestação e que, na realidade, até contribui para que a sua visibilidade aumente e que possam ser consideradas medidas mais abrangentes.
O exemplo do sucedido com o atleta do FC Porto foi mais um exemplo disto mesmo, onde a falta de empatia e solidariedade, a falta de noção de “tribo” e comunidade se viu reflectida num atleta que abandonou sozinho um campo de futebol, permanecendo os restantes atletas em campo (sendo, portanto, “coniventes”). Colegas de equipa que, face ao evento, não tiveram o discernimento de se solidarizar, colegas de profissão (da equipa adversária) que também validaram este tipo de actuação ao não interromper de imediato a sua participação no jogo, adeptos de ambas as equipas que assistiram passivamente a todo este “circo”.. – enfim, todo um conjunto de pessoas que, em boa verdade, validaram no momento um comportamento (racismo) que, imagine-se, em contexto de redes sociais, certamente recriminaram.
A discriminação (entre raças, géneros, de classes, espécies, orientações sexuais, politicas ou religiosas) é tão somente uma “arma” de arremesso e subjugação que uma cultura que teme a diferença teima em promover, muitas vezes, até com a exibição de um “orgulho doentio” que mais não é do que a manifestação da maior das fragilidades: a falta de amor e respeito por si próprio, que só pode terminar na falta de respeito pelo “Outro”.
É na realidade, um “exercício de pequenez”, mas um exercício que pode e deve ser resolvido se enquadrado devidamente na sua verdadeira expressão: gerado geracionalmente por uma cultura que se instalou de forma involuntária e inconsciente, só pode ser combatido com medidas que transcendam todos os sectores da sociedade (do nosso lar, às escolas, clubes, empresas e organismos estatais e outros), também elas geracionalmente planeadas (logo, com expressão a curto, médio e longo prazo) e socorrendo-se de equipas multidisciplinares onde os egos não disputem uma melhor solução a curto prazo, mas sim estabeleçam como missão a possibilidade de vir a encontrar um conjunto de medidas e estratégias sistematizadas que possam erradicar este tipo de comportamentos do DNA de Portugal e dos Portugueses.
Este não é um tema de solução nem fácil nem rápida e, não sendo encarado desta forma, lamentavelmente, o “basta” de Marega será apenas mais uma “moda viral” que, com a brusquidão com que surgiu, também desaparecerá."

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