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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Quantos mais escravos vão continuar a levar ​​​​​​​o futebol às costas?

"Cruzo-me muitas vezes com eles quando vão a caminho do estádio, embrulhados em frio pois aqueles casacos coisa-nenhuma nunca chegam a ser bons. Na roupa, como em tudo o resto, o dinheiro vai tantas vezes para todo o lado menos para onde devia.
Um dos destinos é esta droga legal, o jogo do clube, a claque, a principal razão de ser de uma vida. É a bola que pauta o ritmo de um quotidiano tantas vezes insuportável de horas e horas na fábrica, no vazio do desemprego, na treta de um fim do mês que nunca compra grandes alegrias. Excepto os golos, a felicidade mais barata que há por aí.
À entrada dos estádios transparece esta verdadeira estratificação social: camarotes com estacionamento e gente de bom porte; cadeiras marcadas para a classe média e famílias; e os topos atrás das balizas para as classes C e D.
São exactamente estes últimos que dão corpo, voz e ânimo aos estádios. Eles, os com-fome de tudo, os que mimam jogadores milionários chegados de lugar nenhum e já a rumar para o clube seguinte, à mesma velocidade, esses estão lá sempre. Sem eles também não há espectáculo.
Esta devoção é antagónica ao conteúdo: no futebol tudo está à venda menos o tal emblema, tatuado por dentro de tantos milhões de adeptos anónimos. Esta inebriação mágica fá-los dizer o que for preciso em gritos colectivos, mesmo sem nexo, sem lei, com total ódio ou sem ele, em função do momento do jogo. Um circo quase sempre sem consequências, mas simbolicamente representativo do que ferve por aí de mais fácil: racismo, xenofobia e desejo de uma violência que não tem para onde ir.
Até um dia. O "Vitória" é conhecido pela violência de uma parte da claque. Que o digam jornalistas, treinadores do próprio Vitória e jogadores. "Alcochete" esteve muitas vezes nas bordas de acontecer. Não calhou. Ou não soubemos.
Quem são estes adeptos do que se designa como o "quarto clube" português? Trabalhadores da têxtil e do calçado? Desempregados? Gente "normal"?
No domingo foram centenas e centenas, quase um estádio inteiro a imitar os símios na bancada, numa manifestação de puro gozo sem desculpa - excepto a da falta de educação básica que a vida do Vale do Ave não tem ensinado transversalmente. Vão agora aprender à força. Diferente do Dragão, Alvalade ou Luz? Talvez em nada. 
Mas enquanto esbracejamos para falar do racismo visível-invisível, o gigantesco elefante na sala faz-nos esquecer outro enorme escândalo: a desigualdade social que cada jogo de alto futebol representa. Como pactuamos com uma indústria tão escandalosamente opaca e de salários sem tecto nem nexo?
Já toda a gente quis discutir quão superior é a remuneração de um líder de uma grande empresa por comparação ao funcionário no fundo da pirâmide. "Escândalo", dizemos quanto a "Mexia versus EDP" ou "banqueiros versus bancários". Mas, no futebol: quantas vezes mais pode ganhar o craque da equipa por comparação ao seu colega de plantel mais humilde? Quão maiores podem ser os "grandes" clubes por comparação aos outros com quem competem e sem os quais não existiriam campeonatos? E a questão central: quantos vidas inteiras de rendimento representa cada craque no relvado por comparação a estes adeptos (seres humanos) das bancadas?
Estas são as perguntas mais pequenas. Porque as maiores estão ainda no início, numa mudança social que terá de acontecer. Basta ver o que sucedeu por estes dias ao Manchester City, afastado da Liga dos Campeões por ter violado as regras do fair-play da UEFA. Vai mesmo passar a haver alguma moralidade/transparência? E, já agora, a origem e legitimidade do dinheiro alguma vez contará?
A UEFA e FIFA vivem sentadas em cima dos milhões dos acontecimentos planetários - Mundial, Europeu e "Champions" - o mesmo sucedendo com alguns clubes das ligas inglesa, espanhola (e em parte da alemã, francesa e italiana). Banqueteiam-se com receitas televisivas que têm representado perdas de milhões para as operadoras que investem nesta espiral.
Pergunta-se: porque não existe na Europa um modelo claro e transparente de remuneração de jogadores e de receitas de forma a que a sociedade possa evitar o fluxo de milhões de euros para fora da economia e do bem comum?
Podemos dizer que sim, é a história do mundo: os gladiadores, os artistas, os jogadores. Não... nada se compara a esta espiral de loucura. Messi, Ronaldo, Neymar, ou os cem mais bem pagos jogadores da Europa, seriam o mesmo tipo de jogadores se ganhassem segundo uma tabela máxima por competição. Parte das suas remunerações poderia contribuir igualmente para um "Fundo dos Grande Jogadores", gerido em função da economia e de causas e não apenas da pura especulação ou acumulação estéril.
Na NBA há tectos para salários, o mesmo sucedendo no "soccer" americano - e os norte-americanos são dos mais liberais do mundo. A razão é evidente: sem regras financeiras, a competição é cada vez mais desigual, como se vê, aliás, nos jogos entre ingleses e espanhóis versus os outros na Liga dos Campeões; e o mesmo se passa entre gigantes e minúsculos nos campeonatos internos. Como pode a repartição de receitas continuar a ignorar tanto os pequenos clubes? A NBA tenta evitar isso a bem da competitividade e em parte consegue-o.
É nesta espiral milionária que, paradoxalmente, os "miseráveis" apoiam (ou insultam) os gigantes da arena - mas continuam a dar-lhe o seu sangue-suor-e-lágrimas em função de uma simples ilusão geométrica apaixonante: uma bola que baila sobre o ar e a relva até cruzar linhas de cal e suscitar a glória ou o desespero.
Foi num cenário de guerra tribal que apareceu Marega a dizer que era, tão só, aquilo: um homem.
Por momento, trememos. Ficamos espantados porque lá em baixo há seres humanos. E paramos para pensar.
Só que o futebol também precisa de um outro estremecimento, a partir do topo, que acabe com a escalada imparável dos seus milhões de milhões. E que reconheça que há seres humanos na bancada, ou no sofá de casa, incapazes de pagar cada vez mais e mais pelo amor da sua vida. Tem de haver um limite para a ganância no futebol. Tem de haver um limite para a vergonhosa desigualdade que o futebol fomenta entre seres humanos de todas as cores, em todos os continentes."

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