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terça-feira, 22 de março de 2022

A Xavi do sucesso e um meio campo para matar saudades


"Parece ironia: o Barcelona começa a reencontrar-se com o melhor futebol que já lhe vimos no ano em que viu sair o melhor jogador da sua história, diluído agora no folclore parisiense de uma espécie de Globetrotters do pontapé na chincha. Ao mesmo tempo, todavia, voltou o presidente dos anos gloriosos, Juan Laporta, que resgatou para liderar o balneário outra das lendas maiores desse tempo único, Xavi Hernández. Ficaram para trás os anos de desvario de Josep María Bartomeu, com erros de casting sucessivos, de jogadores e técnicos, avultando as opções sem nexo por Tata Martino ou Ronald Koeman. Duas conclusões no imediato: 1. que os sinais que Xavi já dava, em sucessivas entrevistas e declarações públicas eram indícios de convicção firme e competência provável – quantos dirigentes querem saber o que pensa um treinador antes de o contratar? 2.que nenhum jogador, nem mesmo o melhor de todos, consegue mudar a história de um clube sem rumo ou com treinadores sem dimensão. O futebol é um jogo coletivo, nunca esquecer, mas ainda antes de se chegar ao relvado tem de haver um rumo e uma ideia, um rumo para o clube e uma ideia para a equipa. O Barça voltou a ter, aparentemente ambos.
O que se viu em Madrid no passado domingo foi, pelo menos em metade da explicação, consequência disto. A outra metade esteve no Real Madrid, mas já lá vamos. Voltamos a ver uma equipa catalã personalizada, que quer sempre a bola e dela não abdica nem perante o acumular de golos na baliza contrária. O melhor Barcelona, porque lhe está no ADN mais depurado, será sempre o que despreza o incensado pragmatismo e reivindica protagonismo tático em qualquer campo, frente a qualquer rival. E a recuperação desse estilo com resultados – muito golos e regresso às vitórias por rotina – é o desmentido de que este tipo de futebol era apenas possível, e bem sucedido, num tempo singular em que o destino juntou uma série de baixinhos geniais em La Masía – Messi, Iniesta, Xavi à frente dos demais.
Do outro lado esteve o futuro campeão espanhol - dificilmente o não será – mas que, como em tantas outras épocas, será apenas lembrado pelas individualidades. Não que haja mal nisso, pois o futebol é sempre dos jogadores e o mundo que já aplaude craques definitivos como Rodrygo e Vinicius Jr - os mais recentes exemplares do futebol arte que nascem no Brasil como em nenhum outro sítio – é o mesmo que rende ao talento inesgotável de Modric e Benzema. Frente ao PSG, Benzema encarnou a história, de Juanito e Santillana, Butragueño e HugoSánchez, Ronaldo e Bale, e inverteu sozinho um jogo que parecia sem história. Deste vez não houve Benzema e, sem o farol ofensivo, ninguém encontrou a bússola de uma equipa perdida em campo. A estratégia de Ancelotti foi um desastre, com uma estrutura sem ponta de lança que nem os jogadores pareciam entender para que servia. Sem que os craques agarrassem a equipa nos momentos com bola, ficaram a descoberto as crateras habituais quando sem ela. A diferença face a tantos outros jogos é que desta vez havia um adversário pronto a aproveitar cada momento. E ainda desperdiçou uns quantos além dos quatro.
O Barcelona voltou a ter coerência em campo, com jogadores falantes do mesmo idioma futebolístico. Perante tantos que insistem em ver apenas o episódico de um dia, o individual de um lance, a substituição do jogador A pelo B como explicação para tudo, a árvore como floresta, surge uma equipa em que a floresta resulta de árvores idênticas, o que a faz mais formosa. Mesmo quem mais acelera, como Ferran, Dembelé e Aubameyang, também é capaz do toque de artista. E atrás deles está um meio-campo para matar saudades. Não mais haverá Busquets, Xavi a Iniesta, nada tão harmónico, mas ao lado do mesmo Busquets, o indispensável génio do espaço que despreza o supérfluo, surgem agora dois outros profetas em pantufas, De Jong e Pedri, habitando o terreno por dentro, que é onde as melhores equipas insistem em desmontar os rivais. É um regresso ao futuro, apesar dessa ironia de Messi ter partido no ano errado. O ano em que Barcelona redescobriu que a chave do sucesso começa no melhor jogo. Chave com xis, de Xavi.

PS: Foi por más razões, pela lesão de Rúben Neves, o melhor 6 português, mas a chamada de Vitinha é uma boa notícia para o futuro da seleção e do futebol português. E só se pode dar por feliz um futebol que, por razões diversas, ainda tem como alternativas à convocatória actual, e entre outros, Nelson Semedo, Ruben Dias, Palhinha, Renato Sanches, João Mário, Pedro Gonçalves, Fábio Vieira, Podence, Rafa, Ricardo Horta, Pedro Neto, Trincão ou Gonçalo Ramos. Há mais fartura do meio campo para a frente que daí para trás, há que reconhecer, mas o futuro tem de ser radioso. Que comece já, quinta feira, no Dragão."

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